O conflito israelo-palestiniano que se arrasta há cerca de sete décadas e meia sem resolução é mais um dos legados históricos deixados pelos ingleses para outros resolverem.
Os horríveis e inaceitáveis acontecimentos na Palestina protagonizados pelo Hamas no fatídico dia 7 de outubro de 2023 foram, ironicamente, mais um capítulo da luta dos palestinianos para verem os seus direitos reconhecidos. Depois de duas intifadas e tantos desencontros ao longo de décadas, resta saber o que mais terá de acontecer para se avançar com a solução dos dois Estados prevista em várias resoluções do Conselho de Segurança da ONU, que nem Israel nem o Hamas respeitam.
Durante estas décadas, a comunidade internacional varreu sistematicamente o problema palestiniano para debaixo do tapete, limitando-se a fornecer ajuda humanitária e a garantir que os espoliados da Nakba (1948) não morressem famintos, sem resolver o problema político que lhe estava subjacente, talvez esperando que os palestinianos se evaporassem ou desaparecessem.
Tem sido um período de humilhações diárias, de construção de muros e de ocupação ilegal de terras palestinianas por colonos patrocinadas pelo Estado israelita. Essa indefinição prolongada, e a incapacidade de cumprir o estipulado pelo Conselho de Segurança da ONU, explica parcialmente o momento em que nos encontramos, assim como o surgimento de fações radicais entre os palestinianos, como o Hamas.
Os israelitas também não foram afortunados. Gorada a possibilidade de levar por diante os Acordos de Oslo – em que a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) reconhecia o Estado de Israel – materializada pelo assassínio do primeiro-ministro Yitzhak Rabin, em novembro de 1995, os radicais liderados por Netanyahu passaram a dominar o espectro político em Israel.
Ainda durante a Administração Rabin, Netanyahu mobilizou os setores mais radicais da sociedade israelita contra a implementação dos Acordos de Oslo. Em março de 1994, Netanyahu liderou uma manifestação onde era transportado um caixão com os seguintes dizeres: “Rabin está a causar a morte do sionismo”. Mas a sua ação foi para lá da retórica, tendo transformado a contestação em violência política.
No dia 5 de outubro de 1995, exatamente um mês antes do assassínio de Rabin por um judeu radical, enquanto o Knesset aprovava a adoção dos Acordos de Oslo, Netanyahu organizava uma manifestação de 100.000 pessoas, onde se gritava “Morte a Rabin”. O chefe do Partido Trabalhista, Merav Michaeli chegou mesmo a acusar Netanyahu de ser cúmplice do assassinato de Yitzhak Rabin.
Na contestação aos Acordos de Oslo, Netanyahu encontrou no Hamas um aliado. Na véspera da reunião entre os negociadores palestinianos e israelitas sobre o reconhecimento formal de Israel pelo Conselho Nacional Palestiniano, o Hamas lançou uma campanha de ataques contra civis israelitas, que foi determinante na moldagem da opinião pública israelita para apoiar, no futuro, a formação de um governo de direita e a ascensão de Netanyahu ao poder.
A liderança de Netanyahu na contestação à paz entre judeus e israelitas foi compensada ao vencer as eleições gerais de 29 de maio de 1996, sucedendo a Rabin como primeiro-ministro. Afinal, a esquerda não era capaz de garantir a segurança do país, argumento que continua a prevalecer ainda hoje, pelo menos até ao dia 7 de outubro.
Netanyahu e o imperativo divino
O objetivo estratégico de Netanyahu, e dos grupos que o rodeiam, evoluiu recentemente para um novo patamar. Já não se trata de implementar uma política de separação e de apartheid, mas sim da expulsão dos palestinianos de Israel.
Isso ficou claro em vários momentos. Por exemplo, em janeiro de 2023, Netanyahu afirmou que “o povo judeu tem um direito exclusivo e inquestionável a todas as áreas da Terra de Israel”, sendo a concretização desse direito o objetivo principal do novo governo, que “promoverá e desenvolverá a colonização em todas as partes da Terra de Israel – na Galileia, no Negueve, nos Golã, na Judeia e na Samaria. A supremacia judaica é a política do Estado”.
Há nestas palavras uma visão bíblica e messiânica. A missão de Netanyahu na terra é fazer cumprir essa profecia. Isto é, criar a “Terra de Israel” expurgada de palestinianos e integrando Gaza e a Cisjordânia nas suas fronteiras. Na reunião anual da Assembleia-Geral da ONU, em setembro de 2023, Netanyahu deu nota dessa intenção ao mostrar um mapa do Médio Oriente em que a Cisjordânia e Gaza faziam parte integrante de Israel.
A visão supremacista da história abraçada por Netanyahu está ligada a um destino bíblico. Para concretizar o sonho de um “Grande Israel” que espelhe os tempos bíblicos é preciso, acima de tudo, impedir a existência de um Estado palestiniano independente. O reconhecimento internacional da Autoridade Palestiniana (AP), a 2 de junho de 2023 (139 dos 193 Estados membros da ONU reconheceram o Estado da Palestina), veio agitar as águas em Telavive e aumentar a sensação de perigo em redor da concretização do projeto sionista.
Para atingir esse objetivo, havia que enfraquecer os palestinianos e torná-los irrelevantes. Durante a administração Netanyahu, Israel promoveu a expansão dos colonatos israelitas na Cisjordânia, recorrendo à deslocação forçada dos palestinianos das suas casas e aldeias, frustrando as expetativas de milhões de palestinianos apoiantes de Oslo que, apesar de ser um processo inacabado, abria as portas à viabilização de um Estado palestiniano.
O projeto de liquidação da construção do Estado palestiniano passava também pela normalização das relações com os países árabes vizinhos, conforme previsto nos Acordos de Abraão. A sua concretização, à beira de se realizar aquando do ataque do Hamas, em 7 de outubro, não só comprometeria a viabilidade de um Estado palestiniano como a goraria irreversivelmente.
São muitas as declarações de dirigentes israelitas incitando à destruição de Gaza e à expulsão dos seus habitantes. Por outras palavras, apelando à limpeza étnica dos territórios palestinianos, de modo a permitir a construção da “Terra de Israel” sem árabes. Só assim se compreendem as reiteradas insistências de Netanyahu junto dos Presidentes egípcios Hosni Mubarak, Mohamed Morsi e Abdul Al-Sisi para receberem no Egito os palestinianos de Gaza, aliciando-os com promessas avultadas de dinheiro.
Numa entrevista, o conselheiro de Netanyahu, Danny Ayalon, admitiu que o plano de Israel é “abrir um corredor humanitário para que eles [os palestinianos de Gaza] possam sair…”. O objetivo é invadir o norte de Gaza e forçar toda a gente a ir para sul. Quando isso for conseguido, será anunciado um novo sector a limpar e continuará o avanço para sul até que todos os palestinianos sejam empurrados para o Sinai egípcio, através de Rafah.
Apesar das declarações de responsáveis israelitas nesse sentido, esse objetivo não foi ainda oficialmente assumido. Talvez por isso, o governo de Netanyahu não consegue (ou não quer) dizer, por enquanto, qual será o futuro de Gaza quando as operações militares terminarem.
Netanyahu e o Hamas
Uma das formas de Telavive comprometer a existência de um Estado palestiniano passava pelo reforço do Hamas utilizando-o como arma de arremesso contra a OLP. Na verdade, o apoio de Israel ao Hamas ter-se-á iniciado ainda nos tempos da primeira-ministra Golda Meir que, como os seus sucessores, viu nisso uma oportunidade para contrabalançar a ascensão da Fatah.
Segundo o semanário israelita Koteret Rashit (outubro de 1987), “as associações islâmicas, bem como a universidade [Islâmica de Gaza], tinham sido apoiadas e encorajadas pela autoridade militar israelita”, responsável pela administração (civil) da Cisjordânia e de Gaza. “Elas [as associações islâmicas e a universidade] foram autorizadas a receber pagamentos em dinheiro do estrangeiro.”
O Brigadeiro-General Yitzhak Segev, governador militar israelita de Gaza no início da década de 1980, confirmou aquelas relações de “proximidade” quando, numa entrevista ao “New York Times”, disse que tinha ajudado a financiar o movimento islamista palestiniano como “contrapeso” aos esquerdistas seculares da OLP e da Fatah.
Sem surpresa, em 1997, o primeiro-ministro Netanyahu mandou libertar da prisão o xeque Ahmed Yassin, líder histórico do Hamas, onde cumpria uma pena de prisão perpétua, permitindo o seu posterior regresso a Gaza. Simultaneamente, exigia cinicamente a Arafat que mantivesse o Hamas sob controlo.
Se dúvidas pudessem subsistir sobre a relação promíscua de Telavive com o Hamas, elas desvaneceram-se em 2006, quando Israel ajudou a criar condições para que o Hamas vencesse as eleições legislativas (Hamas 44,45%, Fatah 41,43%), o que estaria na origem, um ano mais tarde, do corte de relações entre o Hamas e a Fatah e da subsequente guerra fratricida, dividindo a AP em duas partes, uma liderada pela OLP, sediada na Cisjordânia, e outra pelo Hamas, em Gaza.
Em 2009, numa reunião da Comissão de Relações Exteriores do Senado, o senador republicano do Texas Ron Paul explicava a hipocrisia dos EUA e de Israel ao encorajar a criação do Hamas, como tinha sido feito com a Al-Qaeda.
Sobre a utilidade do Hamas para Israel, Netanyahu foi muito explícito. Numa reunião privada do Likud, em 11 março de 2019, afirmou que “qualquer pessoa que queira impedir o estabelecimento de um Estado palestiniano tem de apoiar o reforço e a transferência de dinheiro para o Hamas”. “Isto faz parte da nossa estratégia – isolar os palestinianos em Gaza dos palestinianos na Cisjordânia.”
Numa entrevista ao site de notícias Ynet, em 5 de maio de 2019, Gershon Hacohen, um associado de Netanyahu e major-general na reserva, afirmou que “Temos de dizer a verdade. A estratégia de Netanyahu é impedir a opção de dois Estados, por isso está a transformar o Hamas no seu parceiro mais próximo. Abertamente, o Hamas é um inimigo. Secretamente, é um aliado”.
Shlomo Brom, um general reformado e antigo adjunto do conselheiro de segurança nacional de Israel, disse que um Hamas com poder ajudava Netanyahu a evitar negociar um Estado palestiniano. “A divisão dá a Netanyahu uma desculpa para se desligar das negociações de paz, dando-lhe a possibilidade de dizer que não tem parceiro [para negociar]”.
A “transferência de dinheiro para o Hamas” foi confirmada por várias fontes como, por exemplo, por um relatório publicado pelo “The Times of Israel”, de 8 de outubro de 2023: “O Hamas foi tratado como um parceiro em detrimento da AP, para impedir Abbas de avançar com a criação de um Estado palestiniano. O Hamas foi promovido de grupo terrorista a organização com a qual Israel conduziu negociações através do Egito e que foi autorizada a receber malas com milhões de dólares do Qatar através dos postos fronteiriços de Gaza.”
Entre 2012 e 2018, Netanyahu autorizou o Qatar a transferir para Gaza um montante acumulado que se estima rondar os mil milhões de dólares, dos quais pelo menos metade chegou ao Hamas, incluindo a sua ala militar. As transferências fluíram em permanência, mesmo quando as forças armadas israelitas já tinham nas suas mãos os planos de batalha da ação militar do Hamas e os treinos e exercícios preparatórios da ação eram visíveis.
Erro ou provocação?
Os acontecimentos de 7 de outubro têm sido apresentados como um falhanço catastrófico dos serviços de informações israelitas. Os analistas interrogam-se como é que o governo de Netanyahu não se apercebeu de que o Hamas estava a preparar um ataque desta dimensão, que requer longos meses de preparação. Como foi possível tal passar despercebido?!
Passados mais de dois meses sobre os dramáticos acontecimentos de outubro, surgem evidências de que o ataque do Hamas seria do conhecimento de Telavive, tornando insustentável a tese da surpresa e permitindo suspeitar do alegado lapso de distração ou, se quisermos, de incompetência.
Será difícil a Telavive explicar porque é que negligenciou os avisos dos serviços de informações egípcios de que “algo invulgar, uma operação terrível” estaria prestes a acontecer (três dias antes do ataque), quando as preocupações securitárias se encontram no topo da agenda de qualquer governo israelita. Ou o facto de ter sido avisada, dias antes dos ataques do Hamas, como confirmou Michael McCaul, presidente da Comissão dos Negócios Estrangeiros da Câmara dos Representantes dos EUA.
Cabe ainda questionar porque foram desarmados os comités de proteção dos kibutzes algum tempo antes do ataque do Hamas? E porque é que as Forças de Defesa de Israel (IDF) demoraram mais de sete horas a reagir? Como dizia uma ex-militar israelita que serviu nas IDF durante 25 anos: “É impossível que Israel não soubesse o que estava a acontecer. A passagem de um gato ao lado da vedação é suficiente para acionar todas as forças.” Esta sequência de acontecimentos desafia toda a lógica, sabendo como funciona o sistema de defesa israelita e as preocupações com a segurança.
Cabe naturalmente perguntar, como em qualquer conflito, cui bono? Quem beneficia? Será que os acontecimentos de 7 de outubro criaram um pretexto para Netanyahu concretizar o seu objetivo estratégico maximalista e expulsar os palestinianos da Faixa de Gaza, algo em que é acompanhado por largos setores da elite israelita, tanto de esquerda como de direita? Será que estaremos a assistir “ao confronto final entre Israel e o Hamas”, como sugeriu Avigdor Lieberman num memorando datado de 21 de dezembro de 2016?
Não podemos esquecer as palavras do ministro da Defesa Yoav Gallant, em 9 de outubro, quando afirmou que “vamos mudar a realidade no terreno em Gaza… o que existia antes deixará de existir… não haverá eletricidade, alimentos, abastecimento de combustível, estará tudo fechado.” Acrescentando que “estamos [Israel] a combater animais humanos e como tal agiremos em conformidade”, lembrando-nos os argumentos utilizados pelos nazis para exterminarem os judeus.
Ou o recurso de Netanyahu ao Antigo Testamento para justificar uma resposta demolidora ao ataque do Hamas, quando comparou os palestinianos com os Amaleques, e assim justificar o assassínio total e sem restrições de todos os palestinianos, sem exceção, recorrendo à doutrina Dahya, a versão israelita do “choque e pavor” que, num conflito assimétrico, prevê que se exerça pressão sobre o oponente através da total destruição das suas infraestruturas civis, recorrendo ao uso desproporcional da força (comparando com a “quantidade de força” usada pelo inimigo) para atingir esse fim.
Não sabemos, nesta altura, se Israel conseguirá atingir os objetivos políticos e militares explícitos e implícitos da sua campanha. Contudo, não se pode excluir a possibilidade desta situação vir a transformar-se numa oportunidade, tal como aconteceu na guerra do Yom Kippur, em que a derrota militar egípcia veio uns anos mais tarde a saldar-se numa vitória política, ao recuperar em Camp David a soberania sobre a península do Sinai, levando Israel a desmantelar os colonatos na região.
Não se pode, por enquanto, descartar a possibilidade da brutalidade da ação militar israelita, que tanto dano tem causado na população civil palestiniana, vir ironicamente a criar condições para se discutir uma solução política para o conflito. Não será por acaso que os EUA e a AP se encontrarão a discutir o dia seguinte, conforme noticiado pela Bloomberg, onde se espera vir a ter a cooperação do Hamas: “Se o Hamas estiver disposto a assinar um acordo e aceitar a plataforma política da OLP, então haverá espaço para conversações.”
Independentemente do curso que o conflito israelo-palestiniano vier a seguir, será difícil escamotear a responsabilidade de Netanyahu no processo que conduziu ao 7 de outubro. Poderá com o seu comportamento ter comprometido definitivamente a criação da “Terra de Israel.” Os erros das suas opções estratégicas – negar um Estado palestiniano à custa do enfraquecimento da AP e promoção do Hamas – causaram danos terríveis no relacionamento entre judeus e palestinianos. As suas decisões alargaram feridas difíceis de sarar, impossibilitaram a transformação do conflito e a reconciliação entre a duas comunidades. O seu legado ficará para sempre ligado ao lado negro da história de Israel.