Um tempo de profunda crise e incerteza, como aquele que vivemos, deveria apelar à ponderação, à análise rigorosa da informação de que dispomos e a prudência e contenção na manifestação de opiniões.

É fundamental que cada um preserve intactas a liberdade de pensamento e a liberdade de expressão, mas é igualmente importante que se pense antes de falar, que se esteja sempre em condições de se assumir a responsabilidade por aquilo que se diz. Isto vale para governantes e para governados.

Numa altura em que a união de forças seria fundamental para o sucesso da luta contra o inimigo comum, persistem aqueles que continuam apostados na fractura e na polarização da sociedade. Todos estes protagonistas estão a sair derrotados, mas entretanto o custo em vidas não permite desculpar as incursões fatais que fizeram.

Do cidadão comum, espera-se que cumpra as melhores práticas prescritas. Ficar em casa, de repente, assumiu um valor fundamental no combate em curso. Ser vigilante em práticas higiénicas, em comportamentos sociais e nos detalhes das rotinas diárias, faz a diferença entre a vitória e a derrota. Nunca, de forma completamente generalizada, se sentiu que se nos protegermos, estamos igualmente a proteger o próximo.

O egoísmo que pudesse subsistir é automaticamente transformado em altruísmo pela natureza da batalha. Podemos dizer que à volta do mundo a resposta da cidadania, salvo excepções pontuais, tem sido notável. A comunicação e a consciencialização têm funcionado a nível global, e a isso não é estranho o patamar de evolução tecnológica globalizada em que nos encontramos. Este é um fortíssimo activo de democracia, a transmissão generalizada do conhecimento que salva vidas, mesmo nos regimes mais fechados e autoritários da actualidade.

Há, contudo, da parte dos protagonistas políticos, erros que persistem, na circunstância actual, com custos avassaladores. Não há outro modo de o dizer, a gestão política desta crise por Xi, por Bolsonaro, pela dupla Sánchez-Iglesias, por Trump, por Raul Castro, por Boris Johnson foi absolutamente irresponsável e politicamente criminosa.

Começo por Xi Jinping, e pelo país onde tudo começou, onde tudo foi abafado e negado, onde se aproveitou para aumentar ainda mais o controlo do Estado sobre o indivíduo, onde a opacidade é notória e, mais criminoso ainda, se regressa à situação de absoluta insegurança alimentar que provocou tudo isto; não há máscara que mascare esta realidade. Bolsonaro, por seu lado, persiste na via da irresponsável ignorância, contrariando o seu próprio governo, tornado o Brasil num verdadeiro barril de pólvora.

Em Espanha tivemos Sánchez e o seu comparsa Iglesias a apelar à participação massiva em fenómenos de massas ideológicos, o que é absolutamente imperdoável, como é condenável a tentativa totalitarista de silenciamento da imprensa livre; à brutal crise de saúde pública, soma-se em Espanha um ataque sem precedentes à democracia pelo governo mais sinistro desde o fim da ditadura. A chacota, a soberba, o negacionismo, a má-fé, a profunda ignorância das sucessivas declarações de Trump, estão a custar milhares de mortes, milhões de desempregados e um colapso que os Estados Unidos e o povo americano não merecem.

Ali ao lado, sempre fora do mundo, Cuba continua a segurar o sistema comunista à custa da vida dos seus e prescreve a homeopatia como modo de enfrentar o vírus. Por fim, Boris Johnson, o errático e voluntarioso líder que arriscou o que não permite leviandades, que recuou tarde demais e sem convicção, e que ironicamente, numa ironia negra e sem graça absolutamente nenhuma, acabou por provar o veneno que relativizou; oxalá recupere rápido e corrija o que for ainda possível corrigir.

A descrição que acima faço é factual. Existe o registo das intervenções públicas de todos os protagonistas citados. Existe a cronologia do surgimento e avanço do vírus da China à América. Existem as estatísticas diárias acessíveis a todos. Existe a correlação óbvia entre os actos políticos destes protagonistas e a forma como o vírus afeta o país que governam, no caso da China com implicações globais únicas.

Ainda assim, com a tal polarização e fractura de que falei no início, não faltam exércitos da ignorância prontos a branquear ou relativizar o mal dos seus comandantes. Ainda assim, continua a haver um recurso frenético a fake news de um lado e do outro. Ainda assim, o fanatismo de seita continua a ser mais importante do que agir bem e salvar vidas.

Se criticamos Trump ou Bolsonaro, logo os fieis da seita nos dizem de extrema-esquerda e nos atiram com Sánchez ou Xi, como se a culpa destes resolvesse o problema de americanos e brasileiros. Se atacamos Sánchez ou Castro, logo os camaradas fanáticos nos chamam fascistas, atirando com Trump e Bolsonaro, como se isso resolvesse o problema espanhol ou desse poderes milagrosos à homeopatia cubana. De Xi, e da China, há até quem fale da nação modelo, da ditadura salvífica, do país solidário… Chocante, no mínimo.

Como se vê, na essência há muito pouco a mudar. Os velhos dogmas, o espírito de seita, a militância fanática, esses, continuam absolutamente imunes ao vírus. Enquanto assim continuarem, o mundo não será muito diferente. Deixemo-nos de ilusões.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.