Ouvir falar um Prémio Nobel é sempre um momento especial nas nossas vidas. Já tive esse privilégio algumas vezes.
Mohan Munasinghe foi Prémio Nobel da Paz, nasceu no Sri Lanka. Dele emana essa calma e paz naturais que associamos às pessoas daquelas paragens. Foi a segunda vez que o ouvi, a primeira foi no ano passado, no Porto, numa espécie de “warm-up” à palestra de Obama. Desta vez foi numa iniciativa deste jornal. Foi, pois, com enorme surpresa que ouvi as inesperadas declarações de Munasinghe sobre o regime chinês.
A propósito de uma interpelação do entrevistador, Filipe Alves, se achava que um regime autoritário estava melhor equipado para combater os desafios da sustentabilidade indagou “o que é ser autoritário?” deixando o entrevistador em contrapé… “Não acredito na dicotomia entre autoritário e democrático, avalio as coisas pelos seus resultados práticos. A China retirou mais de seiscentos milhões de pessoas da pobreza.” E estabeleceu uma sumária comparação com a India, a maior democracia do mundo, sublinhando como esta não consegue, em democracia, os mesmos resultados naquilo que chamou “alcançar o bem do povo”.
Fiquei estupefacto. E esperei um emendar de mão. Mas não. Continuou dizendo (inexatamente) que a China tem mais de mil e seiscentos milhões de habitantes (tem apenas 1,4 mil milhões) e que “a democracia lá não funcionaria. Seria o caos”. Pensei levantar-me e ir embora. Mas Mohan não tinha terminado. Continuou. E diz o seguinte: “A China tem um sistema seletivo pré-eleitoral” daí inferindo que não é portanto antidemocrática (!!!).
Pois bem, tenho o seguinte a comentar: Franco ficou na história pelas suas frases simplistas. Entre elas conta-se que disse dos espanhóis: “No se os puede dejar solos”, “Não vos posso deixar sozinhos”. E daí fez derivar um regime baseado na condescendência, paternalismo e mão de ferro que ainda hoje reverbera na sociedade espanhola.
É esta a filosofia de Munasinghe relativamente à China. Uma das mais antigas nações do mundo, o berço do confucianismo e de algumas das mais notáveis invenções humanas, do povo que construiu a maior rede de alta velocidade do mundo, que nutriu e lançou empresas como a Alibaba ou a Tencent, que é a maior produtora de energias renováveis do mundo e, sim, que arrancou 600 milhões de pessoas à pobreza em menos de 30 anos. Fê-lo, aparentemente, apesar da sua fraqueza, ignorância e desnorte e apenas porque o regime e os seus “illuminati” assim lho impuseram.
Este relativismo – de ver as boas consequências de regimes autoritários e atribuí-las a um regime e não aos povos sem se lhes exigir explicações sobre o preço imposto – tem paralelo na História. Hitler, por exemplo, foi louvado pelas primeiras Autobahn do mundo e pelo primeiro carro do povo produzido na Europa, o Volkswagen. Atribuía-se-lhe ter arrancado a Alemanha dos desmandos da República de Weimar e da humilhação imposta por Versalhes ao povo alemão que, sem ele, nada teria conseguido. Já sabemos como a coisa terminou.
O “bem do povo” não pode ser conseguido à custa de um milhão de uigures encerrados em campos de concentração, dos massacres de Tiananmen, dos milhares de execuções anuais, mais que o resto dos países do mundo somados (segundo a Amnesty International). O “bem do povo” não pode ser alcançado se o regime classifica os seus cidadãos entre “bons” e “maus”, em que ser “mau” decorre de atravessar a rua fora da passadeira ou de postar uma notícia desagradável sobre a China. Sim, é caso para dizer, antes pobre e honrado que rico de tal forma. Não são apenas os resultados que contam.
Ouvir um Nobel da Paz declarar que os chineses não são confiáveis em democracia é mais do que grave: é gravíssimo! A autoridade moral que o prémio granjeou a Mohan Munasinghe também lhe exige uma responsabilidade especial na opinião – no seu caso, livremente emitida. Os fins não justificam os meios, todos os sabemos. E o “bem do povo” não pode ser conseguido à custa da privação da liberdade, da denegação de justiça e da supressão da opinião.
Fiquei triste por Mohan Munasinghe e fiquei triste pela sua nobre causa.