Escrevo estas linhas na esplanada da Pastelaria Império, em Bissau. Em frente está a serena Praça do Império, hoje oficialmente Praça dos Heróis Nacionais. No centro da praça ergue-se um grande pilar de pedra que me lembra, na sua decoração, o monumento às descobertas junto à Torre de Belém, em Lisboa. O palácio presidencial, ao fundo, não é visivelmente uma obra da independência. A imponência do palácio do antigo governador colonial foi suficiente para expressar a dignidade do novo país. Apenas um novo escudo, no frontão do palácio, assinala a mudança.

Já o monumento à glória do Império foi mais violentado. Da inscrição que o dedicava ao “esforço da raça” apenas restam os furos dos cravos arrancados à pedra. Ouvi contar que os libertadores tentaram arrancar todo o monumento, mas ao verem os sólidos alicerces esventrar o solo da praça, decidiram parar. A mulher de pedra, de peito afirmado, de braços erguidos empunhando uma coroa de louros, passou a exaltar os “heróis da independência”. As cinco quinas e a cruz de Cristo esculpidas no seu ventre assumem sem complexos a origem do Império. Uma estrela de cinco pontas, símbolo central da nova bandeira, foi colocada no alto do monumento tornando-o, num esforço de transcendência, ainda mais alto. É o mesmo monumento, com um novo olhar.

Cheguei à Guiné-Bissau vindo do Brasil e de Cabo Verde. No Recife, o médico imunologista carregou-me com seis injeções nos braços quando soube do meu último destino. Justificou-as com a cor vermelha que essa terra de nome estranho tem a assinalá-la no mapa das insalubridades mundiais. Mesmo em Cabo Verde, o país mais irmão da Guiné-Bissau na distância e na história, vir à Guiné-Bissau é como viajar ao passado.

A um passado de prosperidade que levou muitos cabo-verdianos a trocar a sua terra seca pelas terras férteis do Império em África. Só que hoje a nação irmã da luta pela independência é uma sombra que se pretende bem afastada do futuro risonho que já se sente nas ruas da Praia.

Talvez só um português consiga dar universalidade a este pequeno recanto esquecido da África Ocidental. Só mesmo um português sinta a vontade, a responsabilidade de não deixar que se perca este testemunho ainda tão preservado, mas tão frágil, do antigo Império colonial português. A Guiné-Bissau, com escassos 1,5 milhões de habitantes, tornou-se, em 1997, no oitavo país da União Económica e Monetária do Oeste Africano (UEMOA), um vasto espaço fundado anos antes por sete países francófonos seus vizinhos.

A moeda comum, que a Guiné-Bissau adotou, é o “franco”. Se alguém em Bissau quiser fazer hoje um mestrado em Gestão, a única solução local que tem é inscrever-se na recém-criada Universidade Católica da Guiné-Bissau, ter aulas prévias de francês, para poder frequentar um programa promovido por um convénio de Universidades Católicas da África Ocidental, que decorre no vizinho Senegal ao fim de semana, a pouco mais de duas horas de viagem de carro.

Sem saber de nada disto, vim a Bissau por conta própria, animado pela vontade de conseguir integrar a Guiné num projeto de formação executiva de Universidades Católicas, a de Angola, a de Portugal e a do Rio de Janeiro. Vai ser rentável? Vai ser sustentável? Há mercado? O ano passado integrámos Cabo Verde. Mas a Guiné-Bissau é muito mais pobre, é o mais pobre dos países da CPLP.

É fácil recuperar Bissau. As ruínas estão lá todas. A cidade está degradada, mas não desapareceu. Mangueiras centenárias continuam a sombrear as ruas. A cidade é plana e calma. As pessoas circulam nas ruas em completa paz, como se a decrepitude física das calçadas em nada alterasse a personalidade respeitável dos seus moradores. Não se sente nenhum medo de assaltos ou homicídios. Para um português como eu, que pensava vir para o fim do mundo do antigo Império, a surpresa é quase inacreditável!

Se for benfiquista, empolgue-se vendo a monumental sede do Sport Bissau e Benfica, que apenas precisa de pintar as fachadas para salvaguardar a dignidade da majestosa águia esculpida no seu frontão principal. A Galp, omnipresente, com postos bem cuidados por toda a cidade, a única grande marca de combustíveis na Guiné, está sediada num excelente exemplar de prédio da arquitetura colonial de meados do século passado. A TAP, na Praça do Império, tem um mais moderno edifício da fase da colónia em guerra, numa curiosa arquitetura em que palas reduzem a probabilidade de balas perdidas atravessarem as janelas. “Nô ka larga (nós não te largamos, em crioulo) Guiné-Bissau” é a frase que encima a sua porta.

Se estiver na esplanada da Pastelaria Império, a sonhar com uma cerveja bem gelada que lhe tire a sede no tórrido sol tropical, ouvirá a pergunta: “Super Bock, Sagres ou Cristal?”.