Antes de transportar as crianças para a Terra do Nunca, Peter Pan deu-lhes um conselho: “Fechem os olhos, pensem em coisas bonitas e serão capazes de voar”. Os sucessivos governos portugueses têm usado a mesma receita patrocinada pela fada Sininho. Só que, nos derradeiros anos, em vez do Capitão Gancho, os inocentes portugueses encontraram uma pandemia sem fim e, depois, a guerra na Ucrânia.
Cumprir as palavras sonhadoras de Peter Pan poderia revelar-se algo complicado na actual situação. Mas, exceptuando o preço da gasolina, o país parece viver na Terra do Nunca. Fora a aposta no Totoloto da gasolina, que poderá dar-nos a indicação do preço na próxima semana, Portugal não existe. Temos, há meses, um Governo que não pode tomar decisões estratégicas, porque está em gestão. Escuta-se alguma voz de pânico? Nem um pio.
O resultado final das eleições só será conhecido lá para o final do mês, depois de uma trapalhada digna do Monstro das Bolachas e do sapo Cocas de “Os Marretas”. O país indignou-se? Orgulhosamente, encolheu os ombros. O OE só deverá ser aprovado lá para Julho. Há sirenes de alarme nas ruas? Não: o sítio come uns croquetes.
O país assiste a uma seca sem precedentes. Alguém treme? Simplesmente assobia-se para o ar. Um banco que já perdeu milhares de milhões de euros, tem lucros e pede mais uns 200 milhões ao Fundo de Resolução, como se estivesse apenas a solicitar mais um gelado de morango. Alguém fica irado? Meia-dúzia de rezingões.
Ninguém parece governar o país. Ou seja, o sítio espreguiça-se e alguns governam-se. Como sempre se fez. Os portugueses habituaram-se. E, de vez em quando explodem. Especialmente em jogos daquilo a que chamávamos futebol. Coisa rara num pequeno rectângulo de brandos costumes. Um caso de rodapé é o da nacionalidade do senhor Abramovich, benemérito financiador do Chelsea e que pode circular de iate na UE porque tem um passaporte português.
Desgraçadamente foi por causa de se falar dos “oligarcas” russos (que foram tentados a ter “visas gold” portugueses por ilustres membros da nossa sociedade) que se falou do senhor Abramovich. A PJ decidiu ir verificar as certificações dos descendentes de judeus sefarditas expulsos de Portugal no século XV. Uma lei, que seria sensata, tornou-se um negócio, até devido à sua “malha larga” (ao contrário da legislação espanhola) que parece ter permitido equiparar uns “certificadores” aos “comissionistas” do futebol.
A acreditar na PJ a bagunça, no Porto, foi total. O país político (do Governo, ao ainda existente Parlamento, que aprovou a lei sem reparar nas suas possíveis consequências se mal interpretada), está calado. Veremos quantos mais “oligarcas” (não apenas russos) andam por aí de passaporte português, devido a leis bacanas e meritórios “visas gold”.
A vidinha corre bem para alguns. Deixou de se falar da Covid. O pandemónio da Avenida Almirante Reis sumiu-se. O SNS também parece ter deixado de estar na penúria. E, segundo conta a imprensa, parece que há apenas alguma agitação e trabalho a sério no gabinete da doutora Laurinda Alves: o doutor Pedro Simas, pessoa muito estimada pelos canais de televisão, não foi eleito vereador, mas já foi galhardamente recompensado e será assessor.
Será mesmo verdade? Em Portugal as autoridades políticas disfarçam-se, de vez em quando, de Mr. Bean e propõem ao povo que se entretenha com uns reality-shows ou com o futebol para combater as crises que nos cercam. E para estarem distraídas sobre o resto.
Gene Kelly dizia que o seu parceiro favorito para dançar era Jerry, o rato dos desenhos animados. Porque chegava a horas. O exausto Governo está a ter o seu momento Gene Kelly: há meses que dança na chuva e começa a ser incapaz de chegar a tempo aos seus compromissos.
O atraso das eleições, a inflação, a guerra, a seca e as trapalhadas sucessivas nos diferentes sectores fazem com que o seu sapateado seja desconexo. Tem a prestimosa ajuda da chamada oposição. Portugal está perdido num engarrafamento. De onde nem o Governo de gestão sai nem deixa os portugueses saírem. Por isso os portugueses esperam e fazem como o cansado executivo e a ineficaz oposição: esperam apenas que o céu não lhes caía em cima da cabeça.
A cor das nuvens
Há um filme muito antigo de Jean Renoir, “Une partie de Campagne”, onde se recordam aqueles domingos eternos no campo. Numa das mais tocantes cenas, chove sobre o rio e vemos gotas a caírem sobre a superfície da água. Aqueles momentos recordam-nos o passado remoto, onde nos sentíamos o odor da palha, a sombra protectora das árvores ou a frescura da água. Aqueles eram dias eternos, o tempo parava e o dia parecia nunca mais ir acabar.
Revi um pouco desse filme após folhear calmamente este livro que junta as palavras de João Paulo Cotrim e as fotografias de João Francisco Vilhena, porque houve um tempo em que julgava que o tempo não acabava. Cotrim faleceu em finais do ano passado e esses dias eternos desapareceram para quem com ele convivia regularmente.
João Francisco Vilhena foi um deles e durante algum do tempo da pandemia juntaram esforços para cruzar as palavras e as imagens, como se ambas se fossem movendo mais ou menos rápidas no tempo que ia escapando. À sua maneira eram pinturas íntimas do céu e da deslocação das nuvens e dos pensamentos.
Escreveu Cotrim: “os dirigíveis têm a mania. Aliás, as vanguardas também. Soerguem-se para bradar aos céus que o mundo está perdido. Onde vamos parar?” Não sabemos. Ninguém sabe. Sabemos apenas que estas palavras e estas fotos são uma muito bela pintura sobre o tempo e a vida.
João Francisco Vilhena/João Paulo Cotrim, “Diário das Nuvens”, Abysmo, 2021
O poderoso chefe
O Padrinho não é, nem nunca foi um filme qualquer. É uma obra eterna. O seu modelo ainda serve de guia a muitas sérias televisivas. Mas, claro, a sua importância é muito superior. O filme permite leituras filosóficas e inclui temas que são muito próprios de William Shakespeare: o peso esmagador do poder, a constante incerteza da traição e o caos que cria um trono vazio.
O filme seria outro sem a intensidade de Marlon Brando, Al Pacino ou James Caan, a música de Nino Rota ou a direcção de fotografia de Gordon Willis. E, claro, Francis Ford Coppola que juntou toda aquela equipa como uma verdadeira família italiana, depois de um almoço em começos de 1971 no restaurante Patsy’s, um refúgio habitual de Frank Sinatra. À cabeceira da mesa sentou-se Marlon Brando, como o chefe que seria no filme. Este estrear-se-ia a 5 de Março de 1972, numa altura em que Hollywood estava tão doente como a sociedade global.
O filme foi uma luz no meio da escuridão. Denunciava a classe política incapaz de cuidar de tristezas aparentemente simples como a do pobre Bonasera, que pede um favor no casamento de Connie. O Padrinho podia ajudar quem não podia socorrer-se de mais nada. Não nos podemos esquecer que o filme estreou poucos dias antes do escândalo Watergate, que atiraria o presidente americano Richard Nixon para o fosso. Coppola, na altura, chegou a comparar o vilão da história, Don Vito, a Nixon.
Hollywood, se viu o filme como a sua redenção, viu também nele o sinal da sua própria destruição. A velha Hollywwod estava a chegar ao fim e uma nova forjava-se, onde o talento do realizador se sobrepunha ao poder do produtor. Coppola era um jovem visionário de 32 anos, que encarou o filme como um mal necessário para para pagar as suas dívidas. Assim conseguiu converter uma película com aspirações comerciais numa obra-prima e em vez de demolir uma velha arte, reabilitou-a de forma magistral.
Cinquenta anos depois vai ser possível vê-la numa versão restaurada, no total dos três filmes que fazem parte da saga da família Corleone. Coppola consertava um mundo que estava cansado. E como dizia Sonny: “Tens de aproximar-te e… Bada Bing!”. Não por acaso Tony Soprano chamara muitos anos depois, ao seu Strip Club de Nova Jersey, Bada Bing!
Estação sonora
A vida é uma longa viagem de comboio, diz António Eustáquio, e nunca sabemos em qual desceremos. É essa incógnita que percorre de alguma maneira “Estação #60”, primeiro disco do Guitolão Trio, que Eustáquio (guitolão) partilha com André Gaio Pereira (violino) e Fábio Palma (acordeão).
A subtil beleza dos temas deste registo têm muito a ver com o encontro destes instrumentos, que criam um ambiente sonoro envolvente. O grupo parte de dois poemas (o primeiro, “Meditação” de Maria de Guadalupe, serve de base para os primeiros 4 temas e “Caminar por caminhar cansa” do poeta castelhano Antonio Gómez, de mote para os 5 seguintes). O disco termina com o tema “Libertação”, dedicado a Aristides de Sousa Mendes. Se a unidade é assegurada por estes poemas, a teia maior é urdida pelo guitolão, instrumento notável e misterioso.
Foi construído pelo mestre Gilberto Grácio (falecido em 2021), após um pedido especial de Carlos Paredes. Sugere uma guitarra portuguesa com uma sonoridade mais ampla, mas cria o seu próprio universo sonoro, colocando-se entre a guitarra portuguesa e a guitarra acústica (ou violão). Mais alquimia: dele só existem apenas 3 exemplares no mundo. E o seu som convida ao diálogo com outros instrumentos, guiado pela sabedoria de António Eustáquio (que já nos surpreendera, por exemplo, pelo seu trabalho com Carlos Barretto).
A forte personalidade do guitolão pode-se escutar em temas envolventes como “A veces las palabras nada significan”, “Cada cicatriz” ou “Que mordi a paz adormecida”. Este é um daqueles discos que surgem nas margens mas, que por isso mesmo, se tornam relevantes e inesquecíveis. Porque cruzam a memória com a beleza sem calendário.
Alix maduro
Alix, uma das grandes referências da Banda Desenhada franco-belga do século XX, envelheceu. E tornou-se senador, numa Roma governada pelo imperador Augusto. É, claro, um choque para os antigos seguidores do Alix de Jacques Martin, que criou as aventuras deste jovem em 1948 para a revista “Tintin”.
A beleza clássica dos desenhos de Martin, cruzada com o estudo da arquitectura da época, tornaram a série um momento supremo durante décadas. O rigor histórico era um dos seus grandes trunfos. Por outro lado, o fascínio do autor pela civilização romana no seu auge (Júlio César), permitia cruzá-la com outras culturas florescentes, como a egípcia ou a gaulesa. Alix era um seguidor de César, como de Augusto, nesta nova série chamada “Alix, Senator”, de que a Gradiva agora edita o terceiro volume, “A Conjura das Rapaces”.
É um Alix diferente que aqui descortinamos, no seguimento da linha traçada pela editora Casterman em 2012 (dois anos após a morte de Martin), com argumento de Valérie Mangin e desenhos de Thierry Démarez. Neste novo mundo de Alix surgem o seu filho Tito e o filho adoptivo Khephren, que o agora senador protege desde o desaparecimento de Enak, o seu velho companheiro de aventuras.
Aqui Alix é aliciado para se juntar a uma conjura para matar o imperador Augusto, mas mais uma vez ele é o homem em que este pode confiar numa corte onde conspirações reinam. O que mais pode espantar os velhos apreciadores de Alix é a aposta numa estética de desenho muito mais realista do que nos tempos de Jacques Martin. E, às vezes, não se percebe se isso é bom ou mau.
O telefone de D. Sancho
Porque é que não se há-de ter telefone, perguntava há muitas décadas a empresa The Anglo Portuguese Telephone. E, de forma divertida, questionava-nos sobre o que D. Sancho I não daria para ter um telefone na sua época, em que “povoava” Portugal. Hoje, na era dos “smartphones”, tudo isto poderá passar absurdo. Mas a história é isto mesmo.