As eleições são a expressão máxima do exercício democrático pelos cidadãos. É assim desde o século V a.C., quando na cidade-Estado de Atenas se começou a implementar a prática do voto. Mas as democracias liberais não se esgotam no sufrágio universal. As eleições não são o Alfa e o Ómega de um sistema que tem outras fontes de legitimação política e outras formas de participação cívica. Daí que o recurso às urnas não seja, forçosamente, a solução para as crises políticas.

Do 25 de Abril à atualidade realizaram-se em Portugal 17 eleições legislativas, incluindo as da Constituinte em 1975. A instabilidade política pós-revolução ditou uma sucessão frenética de governos – provisórios, minoritários, maioritários, em coligação ou de iniciativa presidencial. Quase todos relativamente fugazes. Desde 1976, só seis governos chegaram ao fim da legislatura, o que também se explica pela escassez de maiorias absolutas: apenas seis conquistadas nas urnas e quatro fruto de coligações na Assembleia da República.

A partir de 2019, o Parlamento não cumpriu nenhuma legislatura até ao fim. As eleições legislativas agendadas para 18 de maio são, aliás, as quartas em cinco anos e meio, um registo que suplanta a inconstância governativa da I República e o instável período de 1977 a 1983, marcado por duas intervenções do FMI. Para o atual corrupio eleitoral, muito contribuíram a fragmentação parlamentar e a ascensão do Chega, mas também os “casos e casinhos” que têm ensombrado o nosso regime democrático.

Voltando ao início, as eleições são realmente a expressão máxima do exercício democrático pelos cidadãos e devemos congratularmo-nos por poder votar livremente. Mas o escrutínio eleitoral não pode ser encarado como um mero ritual, suscetível de ser repetido a descaso e vezes sem conta. Há o risco de esvaziarmos de sentido o inviolável direito de votar e de causarmos fadiga nos eleitores, com repercussões na qualidade da democracia.

Efeitos indesejáveis da bulimia eleitoral

E também não devemos escamotear os efeitos indesejáveis da bulimia eleitoral que, em diferentes períodos da nossa vida democrática, parece ter assolado o país. A frequente dissolução do Parlamento impede estratégias e políticas de longo prazo e, consequentemente, as tais reformas estruturais que se transformaram numa espécie de gambozinos da política portuguesa. Diz-se que existem, mas ninguém as viu nem sabe como são.

Muitos executivos tentaram, de facto, lançar reformas. Mas, tendo os seus mandatos sido prematuramente interrompidos, não puderam concluí-las. E como o governo seguinte já não tinha a mesma visão para o país, o rumo das reformas acabou muitas vezes por ser invertido e o trabalho anterior descontinuado. A sucessão vertiginosa de governos levou a que em alguns ministérios – sendo os da Educação, Justiça e Saúde porventura os mais flagrantes – se acumulassem reformas inacabadas, que, como peças de motores diferentes, não encaixaram num modelo de desenvolvimento coerente.

Para além da incompletude reformista, a efemeridade dos governos tem outras consequências igualmente nefastas. Legislaturas curtas são mais propensas à retração do consumo e do investimento, em particular estrangeiro, que aprecia a estabilidade e previsibilidade políticas. Legislaturas curtas são mais propensas à descontinuidade de políticas públicas, penalizando a qualidade dos serviços do Estado. Legislaturas curtas são mais propensas ao despesismo eleitoralista, engrossando os défices orçamentais e a dívida pública. Legislaturas curtas são mais propensas a decisões pouco estudadas e planeadas, que conduzem a erros de governação nem sempre revertíveis sem custos. Legislaturas curtas são mais propensas à tensão socioprofissional, com prejuízo para a atividade económica e a paz social. Legislaturas curtas são mais propensas a custos reputacionais, que podem erodir a confiança no país das instituições internacionais e dos nossos parceiros diplomáticos e comerciais.

À exiguidade dos ciclos políticos não será alheio o défice de crescimento da economia portuguesa, que tem entorpecido o país na convergência com os principais parceiros europeus. Entre 2002 e 2019, Portugal cresceu abaixo de 1% de taxa média anual. Além disso, houve vários anos de recessão e até um resgate internacional. A economia portuguesa foi das que menos se expandiu da zona euro (pior só Grécia e Itália) e o país viu-se ultrapassado, no PIB per capita, por Estados-membros há menos tempo na União Europeia.

É verdade que, nos últimos cinco anos, melhorámos a nossa posição na Europa, ultrapassando a Polónia e a Estónia em paridade de poder de compra por habitante. Mas tenho muitas dúvidas sobre a consistência do nosso crescimento, dado o peso que turismo, consumo e emprego tiveram na recente aceleração do PIB. É que tanto o turismo como o consumo e o emprego são bastante vulneráveis a choques externos e não correspondem à mudança de perfil de especialização de que a economia portuguesa carece. Isto sem esquecer o efeito PRR, que deu gás ao investimento, mas é irrepetível a partir de 2026.

A deliquescência do regime democrático

A tudo isto acresce, como pano de fundo, a deliquescência do regime democrático que as sucessivas dissoluções da Assembleia da República consubstanciam. A cada eleição antecipada, a confiança entre eleitos e eleitores conhece novo desgaste; a credibilidade das instituições democráticas sofre um dano profundo; as pontes de entendimento entre os principais partidos tornam-se mais frágeis; os consensos essenciais à vida democrática afiguram-se mais difíceis de atingir; os populismos ganham especial alento e adesão; a sociedade perde força anímica para uma cidadania ativa, esclarecida e vigilante.

Aqui chegados, só podemos encarar com preocupação as próximas eleições e sobretudo o cenário governativo que se perspetiva. Portugal parece enredado numa rotina de miniciclos políticos, o que, pelas razões que já aqui explanei, é um risco para o nosso regime democrático e um obstáculo ao nosso crescimento económico. As próximas legislativas muito dificilmente serão clarificadoras. Não se prevê que delas resulte uma solução de governo sólida e duradoura, que confira estabilidade ao país. Muito provavelmente, a estas eleições antecipadas outras se seguirão no curto prazo, agravando as mazelas do regime e deixando o país mais exposto à turbulenta conjuntura internacional.

Interromper a dinâmica de miniciclos políticos exige, a meu ver, uma nova cultura democrática em Portugal. Uma cultura mais aberta a coligações de geometria e composição variáveis e que faça prevalecer o interesse nacional sobre o interesse partidário, a preservação do regime sobre as tentações niilistas e antissistémicas, a tolerância, diálogo e respeito entre partidos sobre a barganha e o taticismo políticos.

É assim que as democracias do Norte da Europa funcionam. Veja-se o caso da Suécia, da Noruega ou da Dinamarca. De resto, hoje na Europa apenas três países – Grécia, Hungria e Estónia – são governados por partidos com maioria absoluta. Os restantes têm governos maioritários em coligação ou governos com o apoio de uma maioria no Parlamento.

As condições para a formação de coligações decorrem, muitas vezes, das características dos próprios sistemas eleitorais desses países, cuja arquitetura reforça a legitimidade e independência dos deputados. É o caso do sistema alemão, em que o eleitor vota, no mesmo boletim, para o candidato que concorre pelo seu círculo eleitoral e para o partido que concorre no estado federal. Na Alemanha, de resto, os governos de coligação são a regra e, como está a acontecer, podem até resultar num “bloco central” entre CDU/CSU e SPD.

Uma mudança ao nível do sistema eleitoral será, seguramente, um bom contributo para evitar o entrincheiramento partidário e facilitar a viabilização de coligações. Se não avançarmos para uma cultura e um sistema que favoreçam o diálogo interpartidário, pode estar em causa a sobrevivência dos partidos tradicionais e até da própria democracia como a conhecemos, valorizamos e prezamos. Corremos, assim, o risco de nos tornarmos, ad aeternum, um país colocado a fita-cola.