Pessoas de boa-fé presumem que o órgão superior da Ministério Público não informaria, urbi et orbi, que um primeiro-ministro está sob investigação sem que, por detrás, nos aspectos sob o resguardo de uma investigação, houvesse razões muito substanciais.

Para escândalo do mais elementar senso comum, pouco depois da notícia que levou à queda do governo, não só se percebeu que o Ministério Público confundiu o que seria uma menção a António Costa com a de um seu ministro que calha ser seu homónimo – António Costa Silva, ministro da Economia e do Mar –, como ainda, ao que parece, não dispunha de nada mais substancial a justificar a investigação que se declarou estar em curso.

Decerto, persiste o escândalo, que envergonhou António Costa, de um chefe de gabinete do primeiro-ministro, sobrevivente dos tempos de Sócrates, esconder dinheiro vivo em São Bento, escândalo mais que suficiente para que Costa apresentasse a demissão. Pelo menos assim deve ser num país em que as suas mais altas instituições interpretem exemplarmente a sua missão pública. Alexandra Leitão bem o reconhece agora: deveria ter sido feita uma reflexão no pós-socratismo. Há muito, mas sempre vão a tempo de a fazer. Simplesmente, entretanto, o escândalo maior é outro.

Se a boa-fé cidadã levou a sério a Procuradoria-Geral da República no passado dia 7 de novembro, o que se pode concluir se perseverarmos na mesma atitude de boa-fé agora em face deste outro escândalo?

Só se vislumbram duas opções com sentido. Ou assumir que estivemos diante da mais gritante incompetência de um Ministério Público, o que deveria forçosamente conduzir a Procuradora-Geral da República a apresentar a sua demissão, pela inacreditável leviandade e falta à responsabilidade inscrita na Constituição de defender a legalidade democrática. Ou admitir o impensável, a suspeita, que se vai fazendo ouvir, de que nos aconteceu, sem que nos apercebêssemos, um golpe de estado.

“O pior ataque que o 25 de Abril e os seus valores sofrem desde a entrada em vigor da Constituição da República”, escreveu Vasco Lourenço. “Há quem fale em golpe de Estado e eu chego a pensar que podemos estar sob um golpe de Estado, porque daqui a uns meses vamos saber que isto não era nada e não tem nenhuma consistência”, analisou com lucidez assinalável Maria de Lourdes Rodrigues. Que acrescenta um dado que deve fazer reflectir: “mais de 70% dos processos que são levantados não são conclusivos”.

Dizer golpe de estado é usar de uma certa liberdade, pois não é tanto o derrube do poder por uma força que se sobrepõe à ordem legítima – golpe perpetrado por militares ou por quem os consegue mobilizar em facção – mas sim como se os instrumentos para identificar e prevenir um golpe de Estado tivessem sido hackeados.

O lugar da identificação do golpe de Estado tornou-se o lugar em que é perpetrado, se for esse o caso, o que nunca saberemos dada a neutralização da capacidade de o identificar.  Resta as opiniões, de uns e de outros, normalizadas como se fossem apenas debate político, o que já de si merece apreensão. Normalizar o discurso da corrupção, do golpe, da excepção, é abrir uma caixa de pandora que já não podemos evitar que traga consequências eleitorais.

No fim da noite ficou uma espécie de golpe de Estado nos resultados, sem que nenhuma responsabilidade por ele possa ser abertamente imputada. É quase um crime perfeito. Extrai-se toda a eficácia do que não precisou sequer de ter realmente acontecido. O antigo conselho de que à mulher de César não basta ser, é preciso parecer nunca dispensou o conselho político inverso: não basta parecer, é preciso ser. De outro modo, alguém está de má-fé.

À beira dos 50 anos de democracia, saberemos manter um país para pessoas de boa-fé?

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.