Sendo o Livre um partido político ainda muito jovem, evocamos, em dias de crise, três realizações que fundamentam a importância da sua continuidade e a necessidade de, por isso, enfrentar fragilidades expectáveis. São também essas fragilidades que fazem do Livre um partido que faz falta.

Começou por se apresentar a eleições europeias candidatando uma lista encimada por um eurodeputado com provas dadas, Rui Tavares, que foi também de quem partiu a ideia de criar este partido, mesmo se muitos contribuímos para a sua fundação. Apresentou um programa político de grande qualidade, teve uma votação expressiva, embora não o suficiente para eleger.

Mas pela primeira vez em Portugal um partido chamava os militantes a escolher os seus candidatos, em vez de deixar essa escolha à opacidade de um gabinete de direcção inescrutável. E pela primeira vez os membros de um partido foram chamados a construir, sob uma metodologia deliberativa, um programa eleitoral, com toda a paciência e cuidado inerente a um processo muito participado. Já tinha sido assim com o programa, estatutos e tudo o que fosse de alguma maneira politicamente relevante. Esta foi a primeira novidade trazida pelo Livre, num tempo em que a democracia desfalece entre a formalidade e o populismo.

Um par de anos depois, o Livre organizou-se com outros movimentos de esquerda para alavancar uma candidatura à esquerda do PS que quebrasse um tabu: um governo das esquerdas que não excluísse esquerda nenhuma. O resultado obtido foi mau, longe de eleger um deputado à Assembleia da República.

O Livre não fez parte da solução governativa que salvou o país da provável catástrofe a que teria levado a obstinação ideológica de Passos Coelho e seguidores. Nem assinou os acordos que permitiram ao PS, mesmo não tendo ganho as eleições, governar sozinho. Mas foi o Livre que, no sentido exacto da expressão, “quebrou o tabu”. Foi aliás fundado, antes de mais, para quebrar esse tabu, que bloqueava qualquer cooperação política entre o PS e os partidos à sua esquerda. E quebrou-o, para benefício do país num momento bem difícil da sua história.

Chegados novamente a legislativas, o Livre foi sozinho a votos, com os mesmos processos democráticos – eleições primárias para estabelecer a lista candidata e construção deliberativa do programa eleitoral. Mas com uma novidade no mundo político-partidário português. Uma lista por Lisboa encabeçada por uma mulher negra e gaga.

Num país que precisa de uma política de quotas para assegurar a presença de mulheres na representação política, e onde é desproporcionadíssima a representação de grupos sociais racializados por uma maioria que os identifica assim (aquilo a que se chama hetero-identificação), a eleição de Joacine Katar Moreira não podia ser mais significativa.

O Livre voltou a estar à altura da renovação que está no seu ADN político. O oportunismo e o ressentimento logo se lançaram sobre a candidata eleita, tanto à esquerda como à direita. Assim se deu relevo à sua impreparação e se amalgamaram as críticas razoáveis decorrentes de erros ou de divergências, próprios à contingência da vida política, a um exercício de desqualificação dirigido à deputada, que assumiu em demasiados casos formas inaceitavelmente violentas e desqualificadoras.

Mas algumas das tentativas de desqualificar a deputada, são também tentativas de desqualificar o partido, com todos os argumentos de impreparação, com todas as acusações de amadorismo, que fazem de Joacine Katar Moreira uma espécie de flanco aberto no ataque ao Livre no seu conjunto. Era preciso que o partido, com a sua experiência e a sua inexperiência, não caísse nesta armadilha destrutiva e tivesse consciência de que, historicamente, serão aquelas três conquistas, tão difíceis, que acabarão sendo reconhecidas. Conquistas que dão base para um futuro inspirador.

O Livre é um partido cheio de ingenuidades. Elas fazem parte da sua vitalidade mas são também convites a armadilhar-lhe o caminho. Escolheu uma maneira particularmente exigente de fazer democracia. Agora que tem um assento na AR, e que a pressão aumenta, seja por parte de adversários, seja por escrutínio público, precisa de estar à altura das suas escolhas e perseverar.

Primeiro, os seus eleitos têm uma legitimidade que resulta do acto eleitoral. Não podem ser encarados como se tivessem o mesmo grau de dependência de direcções partidárias, que dão ou retiram a confiança. A própria expressão “retirada de confiança” não devia constar do breviário do Livre. E juridificar a desconformidade de um voto político, mesmo que por ele não se tivesse pedido desculpa, é um contra-senso. A juridificação só pode ser lida como uma violência que compromete as premissas que impulsionam e justificam o Livre no nosso espectro político.

Segundo, programas políticos eleitorais em que cada medida, cada proposta tem uma história de discussão e deliberação, não podem ser banalizados por representantes eleitos. Não são papel, sequer uma lista de pontos contratualizada, são uma representação viva da inteligência do partido. Justificam leitura, mas também encontro. Uma representação com mais democracia, porque nasceu de primárias, e um programa com mais democracia, porque nasceu de um processo deliberativo, implica um risco de cisão em duas ordens de legitimidade, como a presente convulsão vai mostrando. Mas o desafio é aprender, mesmo a partir de erros ingénuos, a atar as duas ordens com mecanismos de comunicação e encontro.

O Livre escolheu uma maneira difícil de democracia, mas em que não pode deixar de acreditar. Há um apelo de co-responsabilização a fazer, não para com o passado, mas com o futuro. Nada seria pior do que o Livre desenvencilhar-se num acordo de amigos ou de desamigos das dificuldades que são verdadeiramente o seu grande desafio.

O Livre está a viver a sua crise mais profunda, mas verdadeiramente é uma crise de crescimento. Faz parte da vida política de quem se dispõe viver politicamente de peito aberto em nome do bem público e de um mundo cujas mudanças aceleradas precisam de partidos com a sensibilidade e inteligência do Livre. Por mais atiradores-furtivos de alta precisão disparem a inanidade da desqualificação.