Este é um péssimo orçamento. Quaisquer que fossem as opções tomadas, num país com crescimento anémico e uma dívida do setor privado não-financeiro de 222% do PIB, um orçamento que prevê uma redução do défice de 2,4% para 1,6% do PIB, obedecendo às orientações europeias, seria sempre um péssimo e absurdo orçamento.

As acusações de falta de estratégia económica do orçamento têm algum fundamento, mas é importante referir que é impossível, no contexto institucional europeu atual, refletido no tratado orçamental, pôr em prática uma política económica de esquerda. Como disse há um ano o insuspeito Gonçalo Almeida Ribeiro (minuto 44), da forma mais clara e sucinta que alguma vez ouvi alguém dizer: “Eu revejo-me em várias das opções consagradas no tratado orçamental, mas rejeito inteiramente a legitimidade do tratado orçamental. (…) o que aconteceu foi que uma determinada conceção da política macroeconómica e financeira – que é uma conceção claramente à direita – foi gravada na pedra pelo tratado orçamental. E, ao fazê-lo, colocou os partidos de esquerda moderada numa situação muito complicada na Europa, porque eles querem o euro mas rejeitam, por outro lado, como não podem deixar de rejeitar, alguns aspetos do euro.”

Dito isto, dentro do que as regras europeias permitem, creio que o orçamento é, de modo geral, bastante positivo. É o pequeno passo na direção certa que neste momento é permitido e há que lhe reconhecer esse mérito.

Olhando então para a questão de fundo que limita este orçamento, porque é que acho absurda a opção, a nível europeu, de redução de défices e de dívida pública? Numa frase: Porque sem nova dívida (pública ou privada) não há crescimento económico e quando o setor privado está tão sobreendividado como agora, cabe aos governos, que não têm os mesmos problemas de insolvência do setor privado (ou não deveriam ter no caso da zona euro) assumir esse papel, facilitando ao mesmo tempo o processo de desalavancagem das famílias e das empresas.

O crescimento económico tem que ser acompanhado – para não dizer induzido – por um aumento da quantidade de dinheiro em circulação. Na origem deste aumento está sempre o endividamento (aliás, dinheiro é dívida, mas isso é outro assunto) como o Banco de Inglaterra veio claramente explicar há uns tempos. Este papel, de injetar dinheiro na economia, é normalmente assumido tanto pelos governos como pelo setor privado. Em tempos de crise, cabe ao governo assumir este papel quase por inteiro, uma vez que não enfrenta os problemas de insolvência do setor privado. Bem sei que este não é o caso dos países da zona euro, mas isso é uma opção política que pode ser mudada, “bastando” para isso alterar o mandato do BCE.

Num cenário de redução de défices públicos ou até mesmo de superavits, como a cartilha europeia pretende, só será possível termos crescimento económico a um nível aceitável à custa de um ainda maior endividamento das famílias e das empresas. Tendo em conta que na zona euro o endividamento do setor privado não-financeiro atinge atualmente os 164% do PIB, este caminho parece-me claramente inexequível ou, no mínimo, não sustentável.

Sobre este assunto, num artigo recente e essencial sobre dívida privada, Richard Vague examina processos de redução de dívida, tanto pública como privada, desde 1945, para 71 países. Relativamente à dívida pública, foram identificados 42 casos de redução de pelo menos 10 pontos percentuais num período de 5 anos. Em 33 desses casos, ocorreu um aumento pelo menos equivalente de dívida privada, em 8 a redução foi à custa de elevados níveis de inflação e o caso restante foi o da Arábia Saudita, em 1999-2004, numa redução assente na exportação de petróleo.

Concluindo e voltando ao orçamento. Apesar de tentar tomar as opções certas, o exercício orçamental peca por se encontrar delimitado por uma visão errada, focada numa diabolização infundada e irracional de défices e de dívida pública, e que ignora o sobreendividamento das empresas e das famílias.