Envolvi-me pessoalmente no caso de Pedrógão Grande. Criei, em conjunto com outros cidadãos, uma petição para entregar na Assembleia da República que conta com cinco mil assinaturas no momento em que escrevo este artigo. Vamos também para a rua, organizámos duas manifestações, em Lisboa e no Porto.

Os fins-de-semana têm sido passados a trabalhar e convenci a família que não havia nada mais espectacular do que passar uns dias de férias em Monchique enquanto faço a ronda às áreas ardidas. Almejam um divórcio? Uma vida simples e solitária? Poucos amigos e nem um bichano a miar à vossa espera quando chegam de madrugada a casa? Ingressem na política.

Passei os últimos dias a responder a telefonemas e mensagens de pessoas indignadas com as suspeitas de corrupção em torno dos donativos e dinheiro público em Pedrógão Grande. Muitos estão igualmente desanimados. Mais um caso de corrupção? É isto que acontece quando ajudamos? É desta maneira que usam o dinheiro doado? Foi assim que chegaram notícias de Monchique – o valor das doações não ultrapassa, no total, os dez mil euros. Parece que a solidariedade se esgotou. Agora falta esgotar a nossa paciência.

Cresci a ouvir que Deus está nos pormenores. Em adulta compreendi que o diabo também. E onde estão os ‘pormenores’ neste caso? O que diferencia os actos de corrupção de Pedrógão Grande de outros casos no país que alberga escândalos como o BES e a Operação Marquês?

Para começar, a origem – uma tragédia com um número de vítimas, propriedades destruídas e áreas de floresta devastadas sem precedentes. Após a tragédia, uma mobilização exemplar dos cidadãos, algo que já não assistíamos desde a independência de Timor. Pedrógão Grande tornou-se primeiro símbolo de tragédia, mais tarde símbolo exemplar de solidariedade.

Aos quartéis de bombeiros ocorreram pessoas com garrafões de água e mantimentos. E doaram dinheiro. Muito dinheiro. Não foi a única zona ardida, nem a única com vítimas mortais. Mas, no nefasto ano de 2017, foi a imagem de uma estrada coberta de carros em cinza que nos ficou gravada a ferro na memória.

Por isso, as suspeitas de utilização fraudulenta dos donativos e dinheiro público em Pedrógão Grande é um dos casos mais sórdidos de corrupção a que já assistimos – perpetuada pelos dirigentes políticos em benefício próprio, pela usurpação da ajuda às vítimas da própria comunidade. É impossível descer mais baixo.

Há um ano saímos à rua a protestar contra a ineficácia do Governo na resposta aos incêndios. A ministra responsável caiu, mas pouco mudou. Desta vez vamos por algo mais profundo, um cancro chamado corrupção que parasita o país deixando-o exangue. Pode Pedrógão Grande almejar uma terceira vida e converter-se num símbolo de justiça? Talvez seja este o início de uma dura cruzada contra a corrupção.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.