Ao ler há dias o Auto de Levantamento e Juramento de D. Maria I, retive uma frase do discurso proferido pelo Desembargador do Paço, na evocação que fez do antecessor da soberana, D. José I. Dizia o orador que o monarca “sempre quis governar mais em Pai do que em Rei”. Esta passagem remeteu-me para a forma como o actual Presidente da República concebe a chefia do Estado. Obviamente, não é propósito deste texto, por manifesto anacronismo e despropósito, argumentar que Marcelo Rebelo de Sousa procurou inspiração no modelo do soberano de Antigo Regime, mas antes de salientar as duas dimensões do exercício da função: a dimensão institucional e a dimensão informal, respeitando esta última à forma como o chefe de Estado se relaciona com os cidadãos.

Marcelo conhece como poucos, enquanto especialista em Direito, as competências do presidente, sendo por tal motivo de esperar que cumpra com rigor constitucional os poderes em que está investido. A singularidade do seu mandato reside, portanto, na forma como tem estabelecido laços com a comunidade nacional, reveladora de uma forte intuição política, que demonstrou no seu longo percurso de observador atento e arguto da sociedade portuguesa, e que lhe permitiu compreender o que os portugueses esperam do Presidente da República.

Contrariamente ao seu predecessor, Marcelo percebeu que os portugueses vêem no presidente uma espécie de provedor do cidadão, uma figura tutelar, sensível aos seus interesses e aspirações, esperando-o acessível para escutar as suas críticas, sugestões ou queixas. Cavaco Silva foi um presidente recluso no seu palácio, cujas aparições públicas se confinavam à comparência perante audiências devidamente seleccionadas e que valorizou sobretudo o trabalho de gabinete, como é patente na obra que recentemente deu à estampa.

Marcelo, pelo contrário, criou empatia com os cidadãos, exercendo uma espécie de presidência aberta permanente, com o objectivo de criar, como enfatizou na sua primeira mensagem de Ano Novo, “uma proximidade em relação às pessoas, ao cidadão comum, partilhando os seus sonhos e anseios, as suas angústias e desilusões”.

De certa forma, os portugueses concebem o presidente da República como uma figura simultaneamente de Estado e familiar, orgão do poder político embora acima deste, e Marcelo, tal como Mário Soares antes dele, moldou o cargo em função das expectativas dos cidadãos e não apesar delas. Desta forma, tem devolvido à presidência a credibilidade que perdeu com Cavaco Silva o qual, seja por incapacidade para entender a faceta não institucional do cargo, seja por características de personalidade – tanto mais importantes quanto a presidência da República é um orgão de soberania unipessoal, logo influenciado pelo perfil do titular –, seja pela conjugação de ambas, distanciou o presidente do homem comum.

Num momento de crise das instituições políticas, sentida em praticamente todas as democracias, esta abordagem da função presidencial assume a importante vantagem de aproximar governantes de governados, assegurando uma necessária e desejável popularidade do orgão supremo do Estado, relevante contributo para o silenciamento dos cantos de sereia do populismo, perigo maior dos nossos dias.

O autor escreve segundo a antiga ortografia.