O que há de comum entre as ideias do capitão de abril Vasco Lourenço para a Justiça e a atual reforma judiciária do México? Ambos julgam ter encontrado a fórmula mágica para resolver o problema da crise da Justiça: submeter os juízes ao voto popular. Enquanto Vasco Lourenço, subscritor do Manifesto dos 50 para uma Reforma da Justiça, ainda se interroga por que motivo tem o poder de intervir na escolha dos poderes legislativos e executivo e não no poder jurisdicional. No México, numa iniciativa sem paralelo a nível mundial, salvo um precedente aproximado na Bolívia, dentro de um mês, cem milhões de eleitores serão chamados às urnas para escolher, de entre 3422 candidatos, a nova classe judiciária através do voto popular.
Oxalá a interrogação de Vasco Lourenço o tivesse conduzido à conclusão imposta pela integridade do processo democrático, assegurada pela preservação institucional da Justiça para além de maiorias conjunturais. Com efeito, ao contrário da dinâmica em torno da competição política ou political bargaining e de responsabilização dos eleitos pelos eleitores, na Justiça, apesar de o povo ser o juiz do juiz, a obediência deste é apenas perante a sua consciência no momento de interpretar e aplicar a lei, e não a franjas, fações ou grupos de interesse organizados em torno de quaisquer campanhas eleitorais personalizadas.
Voltando ao caso mexicano, e como consequência do processo eleitoral de junho, serão afastados de imediato os atuais 1700 juízes e magistrados e 55 mil funcionários judiciais. Assiste-se, portanto, ao desmantelamento da instituição judicial deste país da América Latina. Como num filme com várias histórias a decorrer em simultâneo em épocas e países distintos, mas interligadas, há 50 anos Portugal esteve na iminência de passar por uma experiência em tudo idêntica. Esse capítulo da história foi recentemente recordado por Vasco Lourenço.
Num artigo de opinião, o militar de abril defendeu que uma nova classe judicial devia ter sido erigida de raiz após o fim do Estado Novo. Ou seja, na sua opinião, o ajuste de contas com o passado da magistratura devia ter abrangido toda a classe de juízes e não se ter quedado pelo saneamento daqueles 113 funcionários do Ministério da Justiça que tiveram intervenção direta nos arbitrários processos políticos dos indignos Tribunais Plenários. Ao contrário do México, a hipótese de Vasco Lourenço é, hoje, mera ficção de história virtual, pois nunca poderemos saber como teria evoluído o PREC sem o funcionamento de um sistema de tribunais imparciais e independentes, embora remetidos a uma condição de passividade e vulnerabilidade durante a fase mais tumultuosa entre o 11 de março e o 25 de novembro.
O que tem estado na génese destas estratégias de populismo judicial, aquém e além-fronteiras, é a retórica de desconfiança sobre a magistratura. Neste sentido, a evolução recente em Portugal até é um balão de ensaio desta realidade. Entre nós, desde que foi celebrado um pacto de regime não escrito entre juízes e políticos no momento da viragem para a democracia, este entendimento só ficou comprometido em função de casos concretos. Haveria decerto mais, mas vejamos três exemplos.
Um primeiro exemplo ocorreu durante a revisão constitucional de 1982. Após uma decisão processual de admissibilidade pelo Supremo da queixa-crime apresentada contra os denominados responsáveis pela descolonização por suposto crime de “traição à pátria”, rapidamente ecoou o slogan populista de “defesa dos cidadãos contra o poder da magistratura”.
A comprovar que as fake news são um nome recente para uma realidade antiga, alguma imprensa informou de forma não rigorosa que a referida decisão já antevia uma apreciação de mérito, o que veio sugerir na opinião pública a ideia de uma perseguição da classe conservadora de juízes, originária do Estado Novo, à nova elite política emergente do regime democrático.
Antes de ser conhecida a decisão de mérito do Supremo que, inocentando todos os visados, esvaziaria o balão da crispação entre juízes e políticos, esteve em discussão na Comissão Eventual de Revisão Constitucional uma proposta de alteração que intentaria, essencialmente, restringir o autogoverno dos juízes mediante uma alteração à composição do seu Conselho Superior, a qual, todavia, não vingou, fruto da intervenção musculada da recém-criada Associação de Juízes.
Um segundo exemplo de confronto de posições sucedeu durante o “período de ajustamento económico e financeiro”, na sequência das decisões do Tribunal Constitucional, que invalidaram medidas de austeridade como, por exemplo, o corte dos subsídios de férias e de Natal aos funcionários públicos e reformados. Nessa altura, perante uma chuva de críticas de ativismo judiciário, na defesa da honra dos juízes do Tribunal Constitucional destacou-se o PCP.
Abrindo aqui um parêntesis só para evidenciar a reduzida distância entre a defesa intransigente da independência dos tribunais e a prática efetiva de populismo judicial, alimentado de contradições e ziguezagues: o vice-presidente do Tribunal Constitucional à data dos referidos factos é, hoje, árbitro presidente em matéria tributária no Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD). E, nessa qualidade, julgou recentemente um conflito entre uma gasolineira e o Fisco, num domínio (contribuição setor rodoviário) em que 81% das decisões tem sido favoráveis ao Estado.
Mas como, no caso em concreto que veio publicitado na imprensa, o Estado perdeu, o PCP entendeu escalar o resultado desta decisão em concreto para propor, pela quarta vez em seis anos, a extinção da arbitragem que envolva o erário público, amalgamando o CAAD, onde são públicas audiências e as decisões (notificadas à PGR, DCIAP e MENAC) com os tribunais arbitrais ad hoc, irónica e tragicamente beneficiados por esta estratégia e que assim vão continuando a passar pelas frestas de um impulso legislativo que lhe confira uma legitimidade acrescida.
Um último exemplo refere-se à situação atual, não estando, por isso, assegurado o distanciamento temporal necessário para uma análise fria e rigorosa. Mas sempre se dirá que o Manifesto para a Reforma da Justiça é em si mesmo explicativo dos casos concretos que motivaram a sua tomada de posição.
Mais de meio século depois do 25 de abril, as respostas aos problemas que forem surgindo na Justiça devem ser procuradas do lado de dentro do sistema democrático, por mais tentadoras que sejam as soluções populistas e simplistas. O debate entre o Ministro da Justiça do I Governo Constitucional, Almeida Santos, com Álvaro Cunhal, na apresentação do programa de governo, é uma síntese visionária sobre o desafio que hoje enfrentamos na Justiça. Depois do apelo inicial de Cunhal para que “se [deixasse] de considerar sagrado e intocável o aparelho judicial, e se o modifique corajosamente, por forma a torná-lo parte integrante e condigna do novo Estado Democrático”, Almeida Santos respondeu: “Mal irá o País quando nos permitirmos julgar os julgadores do ângulo da nossa visão pessoal sobre os casos julgados, o mais das vezes sem o conhecimento dos factos, das provas ou até da lei aplicável. Por alguma razão a Constituição da República confirma a soberania do poder judicial”.
A liberdade de o juiz decidir em consciência não pode ser calibrada à la carte para agradar aos interesses do eleitorado abrangido pelas decisões dos tribunais. O que faz falta no 25 de abril de hoje é proteger a liberdade judicial da tentação populista de mexicanização da justiça portuguesa.