A dimensão e qualidade da administração pública marcam, com frequência, os calendários eleitorais. 2021 não foi excepção. Com as eleições autárquicas e uma importante discussão em cima da mesa sobre o Orçamento do Estado de 2022, o tema regressou ao palco político.

De acordo com os dados disponibilizados no final de Agosto, o número de funcionários da administração pública atingiu o número mais elevado desde 2011, com a tendência ascendente dos últimos anos a compensar largamente as quebras registadas durante o programa de ajustamento.

Estes números, em si, não se configuram como um problema. Em primeiro lugar, este aumento tem de ser contextualizado, uma vez que o último ano foi pautado por uma dinâmica conjuntural muito específica, que explica o aumento considerável de funcionários em áreas sectoriais que se encontravam mais fragilizadas – como a educação e a saúde. Em segundo lugar, Portugal não tem mais funcionários públicos do que a média europeia. Os dados do Eurostat indicam que apenas cerca de 15% dos trabalhadores portugueses são funcionários públicos, um valor substancialmente mais baixo do que encontramos na Suécia, Dinamarca e Finlândia.

Quando os números não são o problema: uma máquina administrativa politizada?

Embora o peso da administração pública possa não ser o dilema central, a verdade é que esta discussão toca numa questão fundamental. Em Agosto de 2021, mais de 730 mil pessoas trabalhavam na administração pública portuguesa. Destas, cerca de 13 mil exercem funções como dirigentes do amplo conjunto de instituições que constituem a administração pública portuguesa.

A estrutura da administração pública é um complexo labirinto de direcções gerais, secretarias gerais, administração periférica, autónoma, centenas de institutos públicos e empresas públicas. O exercício de controlo sobre este complexo aparelho administrativo é um desafio formidável. Para complicar estas contas, imagine-se a dificuldade de coordenar as atividades entre estas instituições e entre os seus dirigentes que têm, também, as suas preferências ideológicas e ideias de políticas que gostariam de ver implementadas.

A legitimidade do sistema democrático assenta na premissa de que as funções de decisão e de implementação de políticas são controladas por partidos políticos que foram escolhidos nas eleições. Sem esta ligação, o funcionamento eficiente da democracia representativa enfrentaria consideráveis dificuldades. Não é, por isso, inteiramente estranho que os partidos que estão no governo procurem os melhores mecanismos de controlo.

As nomeações para cargos de direcção na administração pública são um dos mais antigos – e mais utilizados – instrumentos de controlo da administração pública. Contudo, como o ditado popular bem indica, não há bela sem senão.

Com efeito, o problema reside na frequente associação entre o número de funcionários da administração pública e o aumento da politização ou partidarização da administração pública, com referências ao recrutamento preferencial de funcionários públicos ligados (ou próximos) do partido no governo. Os números são, assim, vistos como o sintoma da ocupação ou captura das estruturas do Estado pelos partidos políticos, o que mina a credibilidade e a transparência no acesso aos serviços públicos, desfigura a capacidade da administração pública, a qualidade da democracia, e o desempenho económico.

As nomeações nascem de (e geram ou reforçam) laços pessoais, políticos ou partidários entre políticos e dirigentes (e entre dirigentes de diferentes organizações), gerando um circuito relativamente fechado em que dificilmente se criam mecanismos que permitam prever e identificar potenciais conflitos de interesses. Além disso, a ausência de mecanismos transparentes e profissionalizados de triagem de candidatos abre margem para que se possam colocar nas estruturas de governação indivíduos com menores competências, mais permeáveis à corrupção.

Por fim, a tendência de rotatividade dos dirigentes, que tendem a cumprir mandatos temporalmente coincidentes com o dos ministros, alarga à administração pública os ciclos temporais próprios dos governos. Os riscos quanto à maior incerteza quanto ao seu futuro profissional e a ausência de redes de segurança podem aumentar os riscos de corrupção. Assim, é difícil firmar um crescimento económico saudável quando os riscos de conflitos de interesses e corrupção são uma realidade.

As percepções negativas quanto à influência partidária nas nomeações é, também, negativa para os próprios partidos, uma vez que debilita os vínculos entre cidadãos e partidos políticos. A politização das nomeações requer que os indivíduos nomeados pertençam ao circuito partidário (e também ao circuito pessoal do responsável pelas nomeações), que emerge como a rota mais segura (e relativamente fechada) de acesso a determinadas posições na estrutura política e governativa.

A administração pública é vista como uma propriedade exclusiva de quem exerce o poder, o que reforça a imagem negativa dos partidos e da máquina administrativa.

Então, como conter os danos da politização?

As diferentes fisionomias das nomeações são mais dinâmicas do que estáticas, o que obriga a encontrar pontos de equilíbrio entre a necessidade de controlo democrático sobre a administração e a exigência quanto à limitação da margem de manobra dos políticos sobre a escolha de dirigentes. O debate tem, por isso, de ser alargado e ponderado. Podemos lançar apenas algumas pistas.

Os danos associados às nomeações podem ser contidos com a limitação do monopólio do executivo sobre as nomeações. Como sabemos, desde 2012, Portugal passou a pertencer ao clube dos países que têm entidades responsáveis pelo escrutínio dos candidatos para posições de dirigentes. O modelo de funcionamento da Comissão de Recrutamento e Selecção para a Administração Pública (CReSAP) não é, seguramente, isento de problemas, o que decorre da fraca e limitada experiência em Portugal do funcionamento deste tipo de estruturas.

A margem de aperfeiçoamento da CReSAP é considerável. Podemos discutir alguns pontos como: i) alargamento do perímetro de cargos sujeitos à apreciação da Comissão (incluindo empresas públicas e entidades reguladoras); ii) imposição de limites à utilização do regime de substituição e ao período de tempo em que um dirigente se pode manter nessa situação; iii) aumento da transparência dos processos de recrutamento através da divulgação dos critérios utilizados no processo de selecção, indo além da divulgação dos três nomes que compõem a checklist entregue ao ministro, e assegurando a transparência, mérito e igualdade de oportunidades no recrutamento.

Para além do seu funcionamento e perímetro de atuação, a CReSAP é a única das entidades independentes que funciona junto do membro do Governo responsável pela Administração Pública – o que garante uma potencial influência política do Governo sobre a entidade – escapando à regra de colocar as entidades independentes sob a Assembleia da República. Talvez pudesse funcionar com recursos próprios (incluindo recursos humanos), que lhe permitissem exercer com uma maior independência do Governo as suas funções.

Estes complexos exercícios para conter os danos da politização são particularmente relevantes no contexto de execução das verbas do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). O acompanhamento da execução dos 16,6 mil milhões de euros do PRR, e a necessidade de garantir o cumprimento de metas definidas com a Comissão Europeia, tem suscitado a criação de grupos de trabalho nos ministérios ou novos departamentos.

Estas alterações sugerem a possibilidade de a politização poder adquirir fisionomias peculiares, com as nomeações a surgir, em larga medida, como imunes ao controlo de entidades independentes ou concursos e, portanto, inteiramente dependentes do poder do ministro. A sua relevância não é, por isso, despicienda, sobretudo se tivermos em conta os danos da politização que referimos acima.

No fim de contas, é uma administração pública

Mas voltemos ao início. A administração é pública e, como tal, deve ser controlada. Ora, o controlo sobre políticos e funcionários requer que os governantes mantenham os cidadãos informados relativamente às suas políticas e atividades. Contudo, a ausência de controlos é frequentemente atribuída ao insuficiente envolvimento dos cidadãos na política. Forma-se, assim, um ciclo vicioso. A oferta de transparência por parte dos partidos e dos executivos é baixa porque não existe suficiente procura por parte dos cidadãos. Por seu turno, quanto menos informação, maior o afastamento dos cidadãos relativamente aos partidos e processos políticos.

Se os governantes não têm incentivos para mudar, tem de caber à sociedade civil a exigência de informação, para que possa funcionar como um sistema de freios, enriquecida, esclarecida e imune à manipulação da informação. Aqui, as organizações que funcionam como catalisadores de acção coletiva têm assumido um papel crucial. Recordemos o trabalho intenso da Associação Transparência e Integridade (TIAC) ou, mais recentemente, da associação “All4Integrity#libertemomeupaísdacorrupção”.

A mobilização da sociedade civil em torno das suas atividades tem feito o seu caminho. A All4Integrity, por exemplo, promoveu, este ano, a primeira edição do prémio Tágides, que pretende premiar personalidades inspiradoras na promoção de uma cultura de integridade, permitindo que os portugueses façam essa avaliação. O envolvimento dos cidadãos tem sido muito interessante. Com efeito, em apenas um mês foram submetidas mais de 250 nomeações. É certo que a nossa história tende a pesar sobre o fraco envolvimento dos cidadãos, mas estes sinais sugerem que embora se trate de um processo lento, é possível alterar este padrão.

Patrícia Silva assina este texto na qualidade de Autora do ensaio “Jobs For The Boys? As Nomeações para a Administração Pública”, publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos