Cláudia não soube responder a Pilatos o que era a verdade – e a pergunta fez o seu caminho, e por aí continuará enquanto o homem for homem. A verdade há-de ser alguma coisa, tem de ser alguma coisa, mesmo para aqueles, como eu, que não a escrevem com maiúscula. Porque ou há verdade – alguma civilizada verdade – ou caos aleatório e boataria, demagogia, fake news e um sem número de parentes dessa enorme, inabarcável família da não-verdade. Mesmo com matizes, ângulos diferentes, méritos repartidos e verdades disputadas e partilhadas, pois claro.
Num processo judicial, a verdade é uma necessidade, como tudo o que tem de ser e tem muita força. E na aparência as coisas são mais simples: é verdade o que o juiz diz que é verdade. Ponto final. O juiz dita a verdade do caso em função do que leu ou não leu, do que ouviu ou não ouviu, do que sentiu, experienciou, acreditou. E é na necessidade prática e pragmática de verdade que se baseia a legitimidade do juiz para a definir no caso concreto. Provado ou não provado. Culpado ou inocente. Tertium non datur.
E tudo isto é certo, certíssimo, e sobre a lógica e o bem fundado de tudo isto nem uma palavra, a não ser subscrever e concordar, até por não ver de que outra maneira – além de um sistema de júri à americana – poderia ser, mas lembrando sempre as regras, os rigores e a obrigatória objectividade da “crença” judicial, e fazendo esta essencialíssima ressalva: a verdade processual vem dos factos, e apenas deles.
Vem da realidade posta no mundo e ao alcance do mundo; não vem nem se destina a estabelecer crenças insondáveis ou a drenar sentimentos colectivos. Nem poderia, e não poderia ontologicamente, porque o “achismo” comunitário, tantas vezes surfando a onda das verdades que enganam, não é matéria de facto, de sim ou não, de provado ou não provado. Não se prova, por mais provável que seja.
Como explicar então que se vejam por aí promoções, despachos, sentenças e acórdãos, uns quantos citados até em parangonas de imprensa, que cavalgam e se cavalgam em coisas etéreas e flutuantes como “alarme social”, “ressonância popular”, “indignação comunitária”, “prevenção geral”, “sentimento de revolta colectiva”? Como sabe alguém de carne e osso o que pensa e o que quer a “comunidade” a cada momento?
Que oráculo de Delfos e poderes mediúnicos são esses que permitem a quem investiga e a quem julga aceder em permanência ao espírito dos tempos? Sobretudo naqueles dias em que – na ausência de melhor argumento, jurídico ou outro – dá jeito trazer a “comunidade” no bolso e na boca e nela procurar amparo, quando não ofuscando visões e vontades pessoalíssimas, pois se é a “comunidade”, se é o povo que diz e quer, e as manchetes confirmam, faça-se o que diz o povo e o que reclamam as manchetes.
Mas o que diz e quer o povo? Não sei, ninguém sabe, nem os tablóides nem os seus editores, longe que andam das metafísicas da verdade no seu objectivo prosaico (mas absolutamente legítimo) de vender. Sei e sabemos apenas isto: que justiça em nome do povo não é justiça popular e que num Estado de Direito é ao Parlamento, se a alguém, que compete falar com Delfos, mediando o que o povo quer através daqueles que elege.
A procuradores e juízes cabe depois – e já não é pouco – aplicar as leis da democracia. Deixando de lado vidências e mundividências, próprias ou “comunitárias”, por ser assim e só assim que a justiça verdadeiramente se faz em nome do povo: servindo-o sem o usar. Como manda a Constituição.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.