Desde que começou a pandemia, muitos têm sido os atropelos à Constituição. Alguns ocorreram durante os sucessivos estados de emergência, outros ocorreram no período de normalidade constitucional entre maio e novembro de 2020.

A reserva de competência do Parlamento foi invadida várias vezes pelo Governo. Foram restringidos direitos fundamentais sem fundamento razoável ou de forma desproporcionada. O direito à liberdade e à segurança, a liberdade de circulação, alguns direitos dos trabalhadores e a liberdade de iniciativa económica foram postos em causa sem que os mecanismos constitucionais destinados à sua proteção tivessem atuado como deviam.

De todos os atropelos à Constituição, porém, o mais chocante foi a imposição ao ensino particular e cooperativo da proibição de prosseguir as suas atividades remotamente, privando os seus mais de 200 mil alunos, só no básico e secundário, daquilo a que tinham direito.

Não adianta o primeiro-ministro tentar reescrever a história, porque a decisão do Governo está gravada nas páginas do Diário da República de 22 de janeiro: “ficam suspensas (…) as atividades educativas e letivas dos estabelecimentos de ensino públicos, particulares e cooperativos (…) dos ensinos básico e secundário”. E, nesse mesmo dia, não fosse alguém ter dúvidas, o senhor que ocupa a cadeira de ministro da Educação tentou explicar a decisão ao país (aliás, num arrazoado linguístico revelador de uma mundividência ideológica própria dos anos 70 do século passado).

Palavras leva-as o vento, mas não quando ficam escritas ou quando há câmaras a filmar. Por muito que se torturem os factos, eles resistem e nunca confessam coisa diferente daquilo que são. Não há factos e factos alternativos, mas apenas verdades e mentiras.

São três as razões da manifesta inconstitucionalidade desta medida.

Em primeiro lugar, apesar de ter sido tomada pelo Governo na vigência do estado de emergência, as liberdades de aprender e de ensinar não estavam suspensas pelo decreto do Presidente da República. O Governo podia fechar todos os estabelecimentos de ensino – isto é, os edifícios –, mas não tinha competência para proibir os professores de ensinar e os alunos de aprender com eles.

Em segundo lugar, a medida do Governo é escandalosamente violadora do princípio da proporcionalidade. Para aferir do respeito por este princípio, os juristas utilizam três testes – adequação, necessidade e razoabilidade –, sendo que a proibição da continuação das aulas em modo remoto falha logo o primeiro teste. Como o vírus não se transmite pelo zoom, a medida não é adequada à finalidade a que se propõe. Pode até ser contraproducente. Professores e alunos em aulas síncronas é a melhor forma de promover o confinamento. Férias podem ser uma tentação para sair à rua.

Em terceiro lugar, a Constituição portuguesa – como todas as constituições democráticas – contém um quadro normativo dentro do qual o poder público, em cada momento, nas políticas que prossegue, faz o balanceamento dos valores da liberdade e da igualdade. É assim nos impostos, na saúde, na segurança social e na educação. Entre liberdade e igualdade não há um ponto de equilíbrio único, mas muitos. Em nenhuma circunstância, contudo, a igualdade de todos pode ser alcançada à custa do esmagamento da liberdade de um grupo.

Sentida como arbitrária, a ordem do Governo foi amplamente desobedecida. Muitas aulas foram dadas às escondidas, sob a capa de apoio aos alunos e trabalhos de casa. Na generalidade das escolas privadas, mas também em algumas escolas públicas – cujos diretores e professores entenderam, e muito bem, que os seus alunos precisam de todo o apoio possível e não podem ser deixados para trás.

O Governo revelou simultaneamente que não tem ambição para o ensino público e que apenas tolera (e mal) o ensino particular e cooperativo. Precisa, por isso, de reler a Constituição, que estabelece uma fasquia elevada para o ensino público, ao mesmo tempo que garante a liberdade de educação – que é coisa bem diferente da simples tolerância educativa.