Em análise macro, há um facto substantivo importante na proposta do Governo para o Orçamento do Estado (OE) de 2020: o documento traz uma previsão de excedente orçamental, coisa que nunca aconteceu desde o 25 de Abril de 1974, ou seja, desde que a sociedade portuguesa vive em Democracia. Dir-se-á que é, apenas, 0,2% do PIB. E obtido, mais uma vez, à conta do crescimento dos impostos (35% do PIB, para 54.844 milhões de euros, que Centeno desmente). E esperando que a evolução positiva da economia (projetada para 1,9% do PIB) absorva os cerca de 900 milhões de despesa a mais. Tudo certo. Mas é – mesmo – um momento histórico. Os mercados e as agências de notação irão apreciar. Será assim que o OE português será visto a partir de fora.

Como país, em algum momento Portugal teria de inverter o processo de viver à conta do sistemático crescimento da dívida – e corrigindo o défice estrutural, como pedia a Comissão Europeia. Em princípio, será agora. Se se cumprir, será uma ótima notícia, que não deve ser desvalorizada, em direção aos compromissos estabelecidos com a União Europeia e a futuros orçamentos mais libertos de juros pesados, insustentáveis e inibidores de uma aposta forte no crescimento económico. Não se esqueçam os números (de outubro): mais de 251 mil milhões de euros de dívida pública, ou seja, acima dos 120% da riqueza produzida num ano.

Outro facto positivo, mesmo que simplesmente formal, é o cumprimento dos prazos de apresentação da proposta. Acabaram as correrias de terceiro mundo entre o Palácio de São Bento e o Parlamento, dois edifícios colados, ainda há poucos anos carregando sacos de papel. Agora, o ministro das Finanças já chega a horas, fresco e com a modernidade na mão, sem falhas informáticas. É um avanço que alinhemos, também aqui, com a Europa.

À medida que se vai explorando a pen drive de Mário Centeno, vão aparecendo as novidades e não apenas aquelas que tinham sido avançadas pelas agências de comunicação governamentais, como a aposta no SNS (de cerca de 800 milhões de euros em relação ao anterior OE) e as prometidas melhorias na administração, transportes e investimento público, áreas até aqui colocadas na gaveta em detrimento da prioridade à devolução de rendimentos perdidos durante a intervenção da troika.

Por exemplo, o desemprego não descerá tanto como se esperava há dois meses. Melhorará mas apenas para 6,1% (não 5,9%). E a atualização dos escalões do IRS far-se-á, como se desconfiava, abaixo da inflação. O IVA da eletricidade será uma novela a acompanhar.

Como de costume, as novidades irão sendo descobertas, digeridas, a conta-gotas e classificadas entre ‘boas’ e ‘más’, conforme as corporações, classes sociais e partidos, interesses especiais das famílias, dos chamados ‘trabalhadores’ (como se o não fôssemos todos…) ou das empresas.

A discussão na especialidade, em sede da Assembleia da República, trará novos focos para a proposta final do OE, que será votada a 6 de fevereiro. Até lá, teremos a funcionar o jogo político, uma vez que o novo Governo de  António Costa não tem maioria e dispensou o aconchego formal da geringonça. Agora entram em ação novos atores, do governo dos Açores (um perigo para a coesão do PSD de Rui Rio) ao PAN e à deputada do Livre. Só o deputado da Iniciativa Liberal não precisou de esperar pelo documento para estar contra. O Chega virá a seguir.

Politicamente, o interesse maior está em ver como se comportam Bloco e PCP. Quais as reivindicações que irão apresentar depois de terem mudado de estatuto perante o Governo PS. E como Rui Rio posicionará o PSD entre as suas convicções e a necessidade da luta eleitoral interna; como vai lidar entre um orçamento que continua a subordinar-se ao Estado e os novos desafios lançados por uma direita emergente e liberal, que surge a desafiar o futuro e o PSD como maior partido de oposição.