1. A classe política tem passado tempo demais em jogo de cintura político no debate da nova lei de bases da saúde! Os passos que se deram somam pouco, infelizmente, pois não tocam no essencial, a situação em que estamos na saúde/sector público vs. sector privado. Tudo aponta para que esta legislatura pouco avance.

Uma dúvida, no entanto, me atravessa a mente. Não consigo entender porque se deixou para tão tarde, para o fim da legislatura, em tempo de preparação de eleições, um problema desta dimensão?!

2. O Serviço Nacional de Saúde (SNS) foi criado em 1979, tendo ficado o Dr. António Arnaut conhecido como o “pai” SNS. De 1979 até hoje, as leis que o têm regido foram sujeitas a várias mudanças. Mas a que alterou substancialmente o espírito e o funcionamento da criação do SNS foi, sem dúvida, a lei de bases de 1990 (decreto-lei 48/90 de 24 de Agosto), em vigor, aprovada no Parlamento pelo PSD com a abstenção do CDS, no primeiro governo de maioria absoluta de Cavaco Silva.

Com esta lei de bases, o PSD entendeu a saúde como um bem/serviço, igual a outro qualquer e, por conseguinte, a estar no mercado, como objecto de transacção e fonte de lucro para os privados.

Na realidade, vejamos o que consta na Base II nº1 alínea f) da lei de bases de 1990: “É apoiado o desenvolvimento da saúde e, em particular, as iniciativas das instituições particulares de solidariedade social, em concorrência com o sector público”.

Aqui, o ponto fulcral é o de proclamar que, nos serviços de saúde, o público e o privado passam a estar em concorrência, ou seja, foi-lhes dado a garantia de estar em plano de igualdade no “mercado”. Assim, ganhará posição quem dispuser de mais e melhores meios (sobretudo financeiros) para conquistar o “mercado da saúde”.

Isto de fundo significa uma mudança radical de filosofia da criação do SNS, equivalente a instituir uma outra filosofia, a do regresso ao passado. Resumindo, uma saúde para os ricos e um arremedo de saúde para os economicamente menos favorecidos.

Esta é a filosofia exacta que a lei de bases da saúde de 1990 veio instituir, mas com um ajustamento de novo tipo. Em certas condições, algumas camadas da população menos rica também vão alimentar o negócio da saúde privada através, por exemplo, das convenções/acordos com a ADSE e o próprio SNS.

3. O que sucedeu no país, a partir desta lei de bases? Um boom dos serviços privados de saúde e uma grande expansão económica do sector privado.

Alguns números acerca do sector privado.  Em 2017, o número de hospitais privados já era superior aos públicos. Num total de 225 hospitais existentes no país, 114 eram privados. Havia quatro grupos privados de alguma dimensão e em forte expansão: CUF Saúde (Mellos) – o maior –, Luz Saúde, Lusíadas Saúde e Trofa Saúde.

O Banco de Portugal, num estudo, e com base nos elementos da Central de Balanços, “analisa as empresas privadas prestadoras de cuidados de saúde, tendo em conta três segmentos de actividade económica: actividades com internamento, actividades em ambulatório e outras actividades”.

Em 2017, segundo esse estudo, havia “cerca de 20 mil empresas privadas prestadoras de cuidados de saúde, que geravam 5,6 mil milhões de euros de volume de negócios e agregavam 78 mil pessoas ao serviço. Considerando o sector alargado às empresas pertencentes às administrações públicas (no âmbito das actividades com internamento), o sector privado da saúde representava 86% das empresas afectas às actividades com internamento e era responsável por 26% do volume de negócios e 15% das pessoas ao serviço do segmento”.

No referido estudo diz-se ainda que “as actividades em ambulatório eram o segmento mais relevante no conjunto das empresas privadas prestadoras de cuidados de saúde” e que, em todo o sector privado, predominam as microempresas, representando 96% do total.

Para se entender melhor estes valores é preciso ter presente que muitos consultórios médicos estão constituídos em empresas em nome individual e ainda muitas outras actividades de prestação de serviços de saúde, como pequenos centros de enfermagem, etc. são também micro empresas.

Em resumo, o sector privado sob todas as suas formas societárias, umas com mais capital, outras com pouco, tem vindo a expandir-se e a assumir cada vez mais importância no sector da saúde. É evidente que não podemos, nem devemos, colocar ao mesmo nível, os grandes grupos económicos da saúde e as pequenas organizações que não são muito mais do que a garantia do posto de trabalho – embora por vezes também uma forma, ainda que “legal”, de reduzir os impostos –, enquanto os grandes grupos económicos da saúde são umas autênticas “fábricas” de acumulação de lucro.

4. Mas, neste contexto, há uma questão interessantíssima que tem a ver com o financiamento da saúde privada.

O Estado financia mais de 50% dos gastos dos hospitais privados, contribuindo a ADSE com cerca de 20% para a despesa corrente desses mesmos hospitais. Daí não se ter percebido bem “a guerra” recente dos maiores grupos privados com a ADSE, só porque esta queria a definição de regras mais precisas.

Contudo, ainda menos entendo a proposta do CDS sobre o alargamento da ADSE a toda a gente. Será que Assunção Cristas sabe o que é a ADSE neste momento? Ou será que quer contribuir para o seu fim?! Esta proposta é mais um caminho aberto para ampliar a componente de privatização da saúde. A propósito, li há dias um artigo de opinião da economista Vera Gouveia Barros sobre esta temática, uma resposta explícita à proposta de Cristas cuja leitura aconselho.

5. E aqui, chegamos ao porquê da necessidade de uma nova lei de bases da saúde. Uma lei de retorno à filosofia original do SNS, por ser a melhor para o país.

A situação que existe, como se viu, corresponde a um processo que nos vai levando a uma saúde cada vez mais privada, aprofundando o fosso entre uma saúde para os ricos e outra para os desfavorecidos economicamente. Mas, hoje, tudo na saúde é bem diferente de 1990. Esta realidade tem de ser tida em conta no equacionamento da nova lei de bases da saúde. Ora, não vi esta questão minimamente equacionada. E palavras belas levam-nas o vento!

O que vi e temo, por não se ter entrado no cerne da discussão ficando-se por aspectos mais secundários, é que a situação permaneça como está com as consequências afloradas no texto – a da rampa estendida para a continuidade da privatização da saúde.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.