Talvez não tenha tido o destaque merecido, mas foi recentemente publicada no Jornal Oficial da União Europeia, a Diretiva ECN+, que visa reforçar os poderes das autoridades de concorrência dos países da União Europeia.

É uma reforma que está a ser preparada há bastante tempo e que visa garantir que as autoridades de concorrência dos Estados-membros dispõem de poderes idênticos aos da Comissão na aplicação das normas de concorrência europeias. Não obstante, desde 2004, as autoridades dos Estados-membros poderem, a par da Comissão, aplicar as normas de concorrência do TFUE, os poderes de que dispõem para o fazer, previstos nas respetivas legislações nacionais, são bastante díspares e em alguns casos manifestamente insuficientes para um enforcement adequado.

Neste sentido, dois dos principais pilares das regras a transpor relacionam-se, por um lado, com o reforço dos poderes decisórios e investigativos das autoridades nacionais, e, por outro, com a harmonização dos critérios seguidos na imposição de coimas.

Depois da reforma da legislação nacional de concorrência, impulsionada pela troika em 2012, Portugal não é dos Estados-membros em que as alterações às regras vigentes serão mais profundas. A Autoridade da Concorrência (AdC) já pode, por exemplo, fazer buscas domiciliárias, desde que reunidas determinadas condições, algo que em Itália ou na Dinamarca ainda não é possível.

Isto não quer, todavia, dizer que a transposição da Diretiva para o ordenamento jurídico nacional não vá implicar uma substancial reforma das regras aplicáveis e que os desafios do Legislador não sejam muito sérios. Muito pelo contrário. Vale a pena olhar para três deles.

O primeiro é que a Diretiva “pede” aos Estados-membros que consagrem soluções que podem ser de muito difícil acomodação constitucional. Em Portugal, há vários exemplos. Um deles é que os meios de prova que a autoridade de concorrência pode utilizar incluam documentos, declarações orais, mensagens eletrónicas, gravações e quaisquer outros objetos que contenham informações, independentemente do formato e do suporte em que tais informações se encontrem armazenadas tais como computadores portáteis, telemóveis e outros dispositivos móveis. A Diretiva vai ainda mais longe e inclui nos documentos que podem ser acedidos a correspondência eletrónica, independentemente de se encontrar aberta ou fechada e ter sido ou não apagada.

Se a atual lei da concorrência que permite a apreensão de “extratos de escrita” independentemente do seu suporte tem dividido doutrina e tribunais, imagine-se a que virá a resultar da transposição da nova Diretiva.

O segundo desafio é o espaço de manobra de que o Legislador dispõe para conceber soluções que vão para além do já previsto na Diretiva. Um exemplo é o do poder das autoridades de concorrência para o decretamento de medidas cautelares. Em diversas legislações nacionais, estas autoridades podem usar este poder, em circunstâncias muito limitadas, apenas quando se coloque o risco de o comportamento em questão causar um dano sério e irreparável à concorrência.

Os requisitos de aplicação desta norma são tão exigentes que, em Portugal, por exemplo, a AdC fê-lo uma única vez, acabando por revogar a medida pouco tempo depois. Ora, a Diretiva permite ao legislador nacional a possibilidade de prever que sejam decretadas medidas desta natureza também noutras situações, porventura com requisitos de preenchimento bastante mais fácil.

Assim, o legislador nacional poderá, por exemplo, optar por permitir que a AdC decrete estas medidas em situações em que existe uma mera probabilidade de prejuízo, desde que sério e imediato, à semelhança do que sucede em França. As opções do legislador terão um impacto tremendo na atuação da AdC daí em diante.

O terceiro desafio relaciona-se com a circunstância de a Diretiva solicitar ao Estado-membro que o limite máximo da coima por infrações às regras de concorrência não seja inferior a 10% do volume de negócios mundial da empresa infratora.

Não só o limite máximo da coima pode vir a ascender a mais de 10% do volume de negócios (será necessário?), como a especificação “volume de negócios global” poderá, por exemplo, incentivar a consideração de volumes de negócios realizados fora do país onde a infração teve lugar, algo que até aqui as autoridades de concorrência nacionais não têm feito.

Note-se que o impacto destas opções poderá ser tremendo e, no limite, levar até empresas multinacionais a não querer ter exposição a determinadas geografias em virtude do risco antitrust.

A transposição da Diretiva ECN+ vai marcar uma nova era na aplicação das regras de concorrência. Só não é certo se será uma era positiva ou negativa. Em Portugal, os desafios são muito sérios e o Legislador tem que estar à altura. Nada como começar com um amplo debate público.