Por vezes, em filosofia, concebemos dilemas éticos em que nos imaginamos a ter de escolher entre salvar uma ou cinco vidas e a ter de justificar a nossa escolha. Cinco são mais do que um e se a dignidade de cada vida é igual à dos demais, então não há como escapar à racionalidade fria de que devemos salvar as cinco com sacrifício da outra.

Mas basta pensarmos que a dignidade de cada um é infinita para percebermos que cinco vezes o infinito ou o infinito uma vez só é exactamente o mesmo nas contas da aritmética. Portanto, se nos dispomos a fazer outras contas é porque já prescindimos do valor infinito das vidas. Se é para não fazer cedências, então não há contas a fazer. Podemos ter de escolher entre cinco e uma vida, mas não há contas que amenizem o peso de uma escolha.

A antiguidade grega percebeu isso cedo, mas parece que os nossos tempos fazem por esquecê-lo. A vida que se liberta do trágico tem um travo de tragédia para os nossos tempos.

É como se houvesse uma meta-dilema sobre a maneira como enfrentamos escolhas difíceis. Ou aprendemos a suportá-las, para isso contribuindo decisivamente o trabalho coletivo da imaginação que antecipa e nos faz viver fingidamente a situação, ou redesenhamos a vida de tal maneira que nunca chegamos a deparar-nos com dilemas.

Ambas as perspectivas dão resposta ao problema das escolhas difíceis: ou comparecemos ou ausentamo-nos diante delas. Mas entre as duas não devia haver dúvidas sobre qual deveríamos escolher. Numa somos sujeitos morais do mundo, noutra tornamo-nos apenas pacientes de uma racionalidade ética que inventamos para abdicar de sermos sujeitos dela.

Humanidades versus contas

Na sua “Poética”, Aristóteles definiu a tragédia como a imitação da acção que, provocando o terror e a piedade, tinha por efeito a catarse de tais emoções. Por outras palavras, é  fingir que se passa pela experiência, para dela retirar alguma coisa. O que vale, com as devidas adaptações, para a Literatura, para o Cinema, para a Arte, todas as formas criativas que nos permitem viver para além da nossa vida.

Martha Nussbaum, em “Not for profit – Why democracy needs the Humanities” (2012), politizou a importância das Humanidades, como experiência de nos pormos no lugar que nos é estranho mas que nos poderia calhar. Pormo-nos nesse lugar é uma preparação para a convivência democrática. Contudo, os nossos tempos atiram-nos na tendência oposta – em vez de experimentar a comparência,  procuram livrar-nos dela.

O tempo das contas é também o da substituição das Humanidades como resposta às escolhas difíceis. Talvez por isso as Humanidades são cada vez menos centrais na vida das comunidades, empurradas para a periferia do interesse social, apenas identificadas com o interesse de elites culturais.

Em sociedades de massas entregues às contas da utilidade agregada, mesmo a literatura, o cinema e as outras formas de expressão criativa tendem a extirpar de dentro delas a força de comparência das humanidades pela sua conversão em “formato”, “entretenimento”, apenas prolongamento da vida de cada um em modo de fantasia e narcisismo. A importância de trazer as Humanidades para o centro da comunidade é ganhar a democracia, um regime em que prossigamos sujeitos morais que se perguntam sobre como vamos viver juntos, como nos vamos entender com o mundo.

Convém notar que nem toda a possibilidade de nos ausentarmos é má. Evidentemente, voltando ao exemplo inicial, podemos conceber carros que conduzem sozinhos e fazem as contas que não fazemos (pelo menos tão bem) sobre quantas vidas se salvam. Até podemos conceber que todos os carros, sobretudo connosco ao volante, as façam por nós. Basta que, agregadamente, se conclua que cometem muito menos erros que nós para que faça sentido deixar-me conduzir como deixo que a máquina da roupa me lave as camisas.

O problema não é deixarmos às máquinas e à Inteligência Artificial aquilo que podem fazer muito melhor do que nós, mas cairmos na tentação de abdicar de lidar com escolhas difíceis, aquelas em que temos de suportar a súbita e integral aparição de uma questão que nos convoca com o pouco que temos, em suma, a comparência por que nos respeitamos e até nos admiramos numa vida que levamos juntos. De outro modo, nem sequer podemos dizer que sejamos verdadeiramente contemporâneos.

Também convém notar que o problema não está nas novas tecnologias, que tanto podem contribuir para ausentar como fazer comparecer. A atenção crítica à direcção que damos à tecnologia não é tecnofobia, é só não aceitar a suposta neutralidade com que surge e se desenvolve a tecnologia.

Mas o desenvolvimento tecnológico, que substitui a comparência humana nas escolhas difíceis, criou soluções que nos dispensam de confiar nos outros e cada um em si próprio. Há um par de décadas, adolescentes ainda menores iam passar férias fora e podiam ficar uma semana sem dar notícia aos pais. Bastava a única cabina telefónica estar a suficientes quilómetros de distância.

Agora, já não se aceita que não estejam sempre contactáveis, precisamente porque podem responder à chamada, estejam onde estiverem. Os pais ofendem-se com a preocupação a que se sentem sujeitados. Sem que se dêem conta, tornaram-se menos disponíveis para confiar. Cresce uma dificuldade em suportar que alguma coisa dependa da confiança. Uma intolerância à confiança instala-se. Para quê confiar se envolve risco e renúncia ao controlo quando já nada disso é preciso?

Contudo, sem confiança, tudo se desmorona. Por exemplo, em democracia elegemos representantes porque confiamos que representarão as preocupações e os interesses das pessoas que os elegeram, confiamos no voto secreto porque nem sempre devemos querer conhecer as razões dos outros, damos o mesmo valor ao voto de cada pessoa porque cada um é portador de uma dignidade infinita. Sem confiança, a democracia não funciona. E, contudo, a democracia é um bom exemplo de como a tecnologia pode ser mobilizada para construir confiança e comparência.

A democracia deliberativa, que convida os cidadãos a fazer mais do que votar, tem hoje condições técnicas que permitem passá-la de ideal à realidade, aliás como resposta não disruptiva aos sinais de crise das democracias hoje.

O politicamente correcto revisitado

Um mundo em que se vive sem confiar é um mundo que tolera menos. O erro, a opacidade, o que fica fora da racionalidade funcional do sistema, o resto que o transborda, a relação com os outros, tudo isso torna-se ruído a limpar. Com a comunicação não é diferente, mesmo com a linguagem inclusiva a que se propõe o politicamente correcto. Se, na verdade, se começa por desistir de confiar na linguagem, não há como criar confiança a partir dela.

Uma linguagem expugnada de ambiguidades, de palavras com uma história suja, de metáforas tensamente indecifráveis, enfim, que deixa de confiar na capacidade de se interpretar, e que perca a disponibilidade do confronto com o resto do texto, com o contexto, com a vida, não cria confiança. Pelo contrário, torna-se um exercício devastador de desconfiança sobre a pessoa que fala, sobre o que ela diz ou escreve.

Por exemplo, presumir que o autor de um texto deve ser criticado quando uma expressão textual que usa não é imediatamente inequívoca é uma sentença de morte sobre a própria linguagem. Poderia a interpretação do texto resolver a ambiguidade, ou a do contexto, mas tudo isso deixa de importar. Fixada no procedimento, menosprezando o conteúdo, a crítica torna-se violência, que em vez de salvar mata. Ganha uma feição de controlo, de um protocolo de comunicação que se sobrepõe à linguagem,  proficiente na inspecção e inábil na interpretação.

Como não há liberdade de expressão sem limites, não há politicamente correcto sem limites. Um desses limites é a imprescindibilidade da interpretação, outro é a definição do âmbito particular da acção do politicamente correcto. E ambos se relacionam.

Por que razão não podemos prescindir da interpretação? Uma palavra só ganha sentido numa frase, que só ganha sentido num texto, que só ganha sentido num contexto, que só ganha sentido no mundo de sentido que povoamos. Tudo o mais é abstracção realizada a partir de frases, textos e contextos, pelos quais não é justo julgar o que alguém agora diz. Todos os vieses são abstractos, e quem avalia a partir desse ponto de vista abstracto desiste do poder de redenção da linguagem.

A linguagem é irredutivelmente concreta e, por isso, não pode ser tratada como um código. Mesmo que inventássemos uma “novilíngua” no dia do seu primeiro uso estaria a sujar-se de contexto e mundo.

A linguagem pode servir para construir códigos, o que não faz dela código. E em certos códigos o politicamente correcto faz especial sentido. Por exemplo, encontrarmos em leis e regulamentos expressões que identificam  através de descrições definidas, como “portador de deficiência auditiva”, “pessoa em situação de sem-abrigo”, “auxiliar de acção educativa”, etc., em vez de nomes que tragam, na sua bagagem conotativa, um estigma ainda socialmente presente.

Quem usa a palavra para comunicar a partir de uma posição de poder, ou seja, em relação assimétrica de autoridade para com quem a dirige, deve obrigar-se a uma comunicação que  procure promover a inclusão. Não é aceitável que um polícia em cumprimento impecável das suas funções não seja também um exemplo impecável de comunicação “politicamente correta”. O mesmo é válido para um professor em contexto letivo, sobretudo se diante de crianças.

Os que falam em nome da autoridade devem fazer um uso constrangido da sua razão (como muito bem explicou Kant ao distinguir os dois usos da razão, privado e público). Não só porque nos compromete a todos, mas porque é precisamente o contexto performativo em que as palavras são acção. Da palavra da polícia espera-se a ordem de acção. Por isso, dita pela polícia, a palavra de estigma será sempre uma ameaça. E da palavra do professor, e dos manuais que usa, espera-se a autoridade do conhecimento.

Para lá deste âmbito, o politicamente correcto não obriga. Só o entendimento livre de cada um num contexto de comunicação concreto determina as escolhas a fazer. Não chamar X a alguém quando se sabe que assim é incluído num grupo discriminado, identificado precisamente por essa designação, não é limitar a liberdade de expressão, mas tacto e sentido de decência.

Devemos exigir que o Estado nas suas diversas manifestações não seja indecente. A mesma exigência não pode ser feita na sociedade em geral. Mas permanece a possibilidade da crítica pública quando o contexto é público. E se, por exemplo, um comentador num grande órgão de comunicação é afastado de funções por ter sido indecentemente ofensivo, devemos discutir se o afastamento foi proporcional, se o contexto (por exemplo humorístico) justificava a indecência, se não está a ser vítima de ondas justiceiras. Não podemos é dizer que qualquer penalização que resulte de expectativas profissionais (dentro do que a lei permite) será censura e ataque à liberdade de expressão.

Isto é, e deve ser, o politicamente correcto. A atenção à expressão inclusiva é uma devolução de confiança. Mas é desastroso quando se perde a noção dos seus limites, procurando que em todos os usos a linguagem esteja conforme uma comunicação regulamentar oficial, convertida numa linguagem-lei, cada um de nós convertido em milícia da linguagem. A linguagem não é norma, é realidade concreta. É relação, e como em todas as relações, tem os seus cantos mal iluminados. Essa opacidade, além de todas as razões, é que nos guarda a humanidade e a possibilidade de um entendimento comum.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.