Um dia, sem que ninguém soubesse de onde ou para que vinham, muito menos a mando de quem, surgiram na rua da vila onde vivo uns senhores empenhados em escavacar o asfalto. Durante dias, a vizinhança foi infernizada com o incessante martelar e escarafunchar do piso, e o infernal barulho da maquinaria utilizada para o propósito. Inicialmente, houve quem pensasse que se tratava de uma qualquer reparação dos esgotos, ou do gás canalizado, ou de um outro qualquer equipamento subterrâneo. Não era. Afinal, tudo não passava de um conjunto de trabalhadores da Câmara, sob ordens superiores, a renovarem o piso das ruas da vila.

Habituada a estas coisas, a população indígena atribuiu logo tudo a ambições eleitorais. É verdade que não há eleições autárquicas este ano, disseram uns para os outros, e por isso o célebre autarca local não enviara os pobres trabalhadores da Câmara para debaixo do sol abrasador com o egoísta propósito de garantir a sua reeleição. Mas há eleições legislativas, e o partido do célebre autarca local, pensaram alguns, agradeceria toda a ajuda que conseguisse obter para sair dos sarilhos em que se encontra.

O problema estava em que no meio de tanta especulação, a população se esquecera de que o célebre autarca local já não pertencia ao partido pelo qual se celebrizara, em resultado de desavenças e pequenas malfeitorias há muito perdoados pelos eleitores mas não pelos agora rivais. O que queria dizer que não podia ser essa a razão.

Uns dias depois, tudo se tornou mais claro. Já depois de convenientemente reasfaltada a estrada aqui na rua, os senhores trabalhadores da Câmara regressaram para debaixo do sol abrasador, e começaram a pintar a estrada de branco. Não toda, claro, mas apenas numa sucessão de pequenos rectângulos do tamanho de automóveis. A população percebeu então do que se tratava: os lugares de estacionamento iriam passar do lado esquerdo da rua para o seu lado direito.

A ideia era compreensível: a rua, de um só sentido, é relativamente estreita, quase tanto como o passeio que a ladeia à direita, e nela passa regularmente um autocarro e esporadicamente alguns veículos pesados ou perto disso, que por causa da estreiteza da via correm o risco (raramente mas por vezes concretizado) de raspar nas varandas do primeiro andar dos prédios desse passeio.

Ao passar os lugares de estacionamento para esse lado, empurrando a circulação dos veículos para o outro, os senhores planeadores da Câmara Municipal eliminavam assim o problema com enorme facilidade, ao contrário da equipa que veio efectivamente fazer tais alterações, os senhores planeadores não tiveram de passar dias debaixo do sol abrasador do Verão português.

Isto se tudo tivesse corrido de acordo com os planos dos senhores planeadores – o que, escusado será dizer, não aconteceu. Apesar de pintados os novos lugares de estacionamento, ninguém quer ser o primeiro, o segundo ou o terceiro a utilizá-los, enquanto os restantes permaneciam do lado em que sempre estacionaram, o que inadvertidamente causaria o bloqueio completo do trânsito na rua.

A polícia, alertada para o problema, pediu à ingénua cidadã que se deu ao trabalho de lhes comunicar a situação que lhes desse a matrícula dos veículos lá estacionados, para que pudessem avisar os donos (não lhes ocorreu que esse talvez fosse o seu trabalho). E assim, toda a gente continua a fazer o que sempre fez, estacionando onde sempre se estacionou e circulando por onde sempre se circulou, e o plano dos senhores planeadores da Câmara lá continua, bonito no papel onde foi desenhado e ignorado no local para onde foi planeado.

Este pequeno mas ridículo episódio da rua onde vivo é, à sua diminuta escala, um retrato microscópico mas revelador de um país em que o poder político não se cansa de legislar e decretar mas onde, por muito que decrete e legisle, nada muda no mundano quotidiano da vida das pessoas. O que, se no caso do lado no qual os carros estacionam numa rua de uma pequena vila não tem consequências especialmente graves, acaba por ser bem pior quando em causa estão coisas de outra dimensão e importância.

Não há cidadão português que, através de experiência directa ou de relatos de terceiros mais ou menos próximos, não conheça inúmeros exemplos de regras e leis ditadas pelo Estado que ninguém, a começar pelo próprio Estado, se digna a cumprir, da proibição de fotocopiar o cartão do cidadão ao horário legal de trabalho, passando pela limpeza das matas ou a distância entre pedreiras e estradas ou habitações. Temos um Estado que manda em tudo mas ao qual ninguém obedece, e ninguém lhe obedece em parte precisamente porque manda em tudo, incluindo naquilo em que não seria preciso mandar, ou pior, naquilo em que não consegue mandar.

Reside aí o problema da distância entre os planos e instruções dos poderes políticos e a realidade mundana: de decreto ignorado em decreto ignorado, de lei desrespeitada em lei desrespeitada, de plano fracassado em plano fracassado, a autoridade do Estado é progressivamente corroída, e cada um se julga no direito e com o poder de fazer lei da sua vontade particular.

O resultado é a desgraça tão bem conhecida de qualquer português que já tenha tido a infelicidade de ter de resolver uma qualquer “chatice”, quer com uma empresa privada quer com uma entidade pública: não vivemos num país regido pela autoridade da lei igual para todos, mas numa sociedade de dez milhões de pequenos tiranos, permanentemente à mercê da arbitrariedade discricionária uns dos outros.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.