1. Bem sei que há mais um político homossexual à revelia dos sindicatos radicais dos costumes, um juiz negacionista contaminado pelo vírus da prepotência e outros maravilhosos assuntos que mobilizam o carnaval permanente em que o país se parece ter especializado, mas eu não consigo deixar de pensar que o carro do ministro Eduardo Cabrita matou um cidadão na autoestrada A6 a 18 de junho, ou seja, já passaram quase três meses, e os vários inquéritos lançados por diferentes organismos ainda estão em ‘segredo de justiça’.

Não consigo fingir que não percebo: um carro, uma estrada, um morto. Três meses!

2. Começa a ser claro que se irá confirmar aquilo que há algumas semanas era apenas um rumor – “não se espere que os inquéritos estejam prontos antes das eleições autárquicas…” (26 de setembro). Não estarão.

E o que é que isto nos mostra? Pois mostra uma ‘democracia’ em que, tal como na Hungria e na Polónia, o respeitinho é muito bonito e o Poder manda mesmo, influencia e determina o ritmo dos processos e quais os que andam e os que se arquivam.

Não há outra forma de olhar para este caso. Insisto: um carro, uma estrada, um morto. Parece simples, não parece?

3. Este caso nunca foi sobre política – mesmo que possa ter consequências políticas sobre um ministro já indefensável. Este caso abrange as pessoas que, indo dentro de um automóvel, uma delas a conduzir, atropelaram um outro cidadão, causando-lhe a morte, e nem sequer se deram ao trabalho de saírem do veículo para assistirem a vítima.

Este caso é sobre a responsabilidade de pessoas que iam num carro conduzido obviamente em excesso de velocidade (mais de 200 km/h dizem testemunhas), em que uma delas, o condutor, com certeza o faria sob as ordens do seu superior hierárquico, o ministro.

Este caso é sobre uma pessoa que, podendo ser responsabilizada por uma contraordenação grave pode não ficar calada.

Este caso, que já era grave, agora também parece ser sobre um país em que quem manda determina os timings de apuramento dos factos à medida dos seus interesses políticos e eleitorais.

Este caso, que num país realmente civilizado (confirmando o excesso de velocidade que todos adivinhamos face ao incómodo e à lentidão do processo) daria prisão ao condutor e demissão ao ministro, ameaça agora ser sobre o funcionamento do país.

4. A política, os seus timings e interesses, determinam o andamento dos processos judiciais e, até, de inquéritos que deveriam ser simples. Repito: um carro, uma estrada, um morto. E acrescento: uma vergonha para a democracia portuguesa. Vamos continuar a fingir que isto não é grave?