A pandemia tem sido um admirável e eficaz “revelador”. Para lá dos inspirados discursos sobre as «produções estratégicas nacionais» de Macron e Costa, entre muitos outros, da recuperação (melhor dizendo, ressuscitação) do verbo “planear” em todos os tempos, modos e conjugações verbais, de insuspeitas declarações sobre a “reforma do capitalismo”, a pandemia precipitou todo um debate sobre o papel da empresa privada versus Estado na produção e distribuição das vacinas.

Depois de um momento inicial – com o aparecimento da vacina da Pfizer –, em que as vacinas foram proclamadas como a suprema demonstração da eficácia e superioridade da “iniciativa privada”, do “mercado” e dos mecanismos capitalistas (1), as coisas embrulharam-se e as dúvidas, mesmo em quem não as tinha, são muitas.

Os mercados não parecem ser aquelas “instituições de coordenação social descentralizadas” (2) justas e eficazes, e o “ensaio contra o «grande capital»”, em que “as maiores empresas são perseguidas e desencorajadas da sua função social” (2), ganhou um notável fôlego na contemplação das manobras e negociatas das multinacionais farmacêuticas de casa e pucarinho com os seus conselhos de administração da UE e dos EUA.

O “livre mercado” é totalmente subvertido, desvirtuado e “a sua função social” reduzida ao balanço dos euros e dólares. Aos olhos de todos estão as dádivas dos custos públicos da investigação fundamental; os adiantamentos de dezenas de milhares de milhões de cifrões por encomendas garantidas; as cláusulas de seguros públicos sobre possíveis pedidos futuros de indemnizações dos vacinados; as garantias absolutas da propriedade inviolavelmente privada das patentes, mesmo que construídas à custa dos dinheiros públicos (só a UE terá investido 21,7 MM€ no desenvolvimento das vacinas); o segredo do negócio no preto e branco dos contratos e a monopolização dos mercados pelas “nossas empresas”, com a ocultação mediática e exclusão política das vacinas russas, chinesas e cubanas (para os media portugueses estas ainda não existem!)

É por isso que Durão Barroso à frente da Covax, ainda não nos conseguiu explicar quando e como vão as vacinas chegar aos pobres deste mundo. Mas estarão a chegar com abundância aos paraísos fiscais… Segundo o Director-Geral da OMS “mais de 94% dos países que já estão a vacinar a sua população são ricos, e 75% das doses foram distribuídas a apenas dez países.” (Público, 09FEV21). Parece que faltam 1,6 MM€ (como?) segundo a GAVI/Covax…

É por isso que se arrepelam os cabelos porque “o acesso à vacina está a acentuar a diferença entre o Norte e Sul, entre ricos e pobres (…)” (3). Parece que afinal o mercado, o capital privado e as suas instituições não estão preocupados com os temas “morais e éticos” (3). Os mercados são lixados…!

É por isso que outros e outras acham que não está certo o negócio da UE com as multinacionais. E depois dos elogios iniciais ao negócio, feito em nome do “ideal europeu” e à Srª Presidente Von der Leyen, dizem agora cobras e lagartos (4)…

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

(1) Por outros, Henrique Raposo, depois de outras pérolas: “(…) as vacinas mostram a vitalidade insuperável do mercado enquanto mecanismo de resolução de problemas.”, “Expresso”, 25NOV20.

(2) Álvaro Nascimento, “Jornal de Negócios”, 19JAN21.

(3) J. Vieira Pereira, “Expresso”, 19FEV21.

(4) T. de Sousa, C. F. Alves, H. Monteiro e etc.