Cumprindo o desiderato constitucional e em regime de normalidade, o Governo apresentou esta semana a sua proposta de Orçamento do Estado para 2021, recheado de dúvidas quanto ao modo de obter apoio parlamentar num processo negocial que se anuncia acidentado e cuja procissão ainda vai no adro.

Apresentando-se como um instrumento de combate aos efeitos da pandemia, e ainda numa primeira aproximação muito superficial, o investimento na saúde, e nas famílias, promovendo o consumo e acautelando os impactos, diretos e indiretos da redução da atividade económica, do crescimento do desemprego, e o reforço de resposta social, o orçamento parece pouco vocacionado para o apoio às empresas (que criam postos de trabalho) mantém a carga fiscal (provavelmente acentua os impostos indiretos) e cria a ilusão de maior disponibilidade das pessoas. Isto é, responde ao imediato, mas não dispõe de perspetiva estratégica a médio prazo.

Uma das anunciadas novidades é a criativa forma de financiar o património cultural, através da cativação de uma receita de uma raspadinha específica para o efeito. Com esta medida que afeta receita, o Governo pretende demonstrar uma prioridade num determinado setor que deveria, por natureza, ser financiado pelo Orçamento do Estado e não por uma pobre manifestação de crowdfunding à portuguesa. Ao optar por financiar desta forma a cultura, mesmo que parcialmente, assume-se uma atitude em detrimento da ação social que tem sido desenvolvida por outros protagonistas. Assim, é tirar da Santa Casa para distribuir pelos monumentos. É obra garantida.

Vale assim a aposta num jogo não controlado, o que tem merecido críticas de especialistas, dada a viciação que facilmente se adquire, na ilusão do acesso a prémios rápidos e a dinheiro fácil, pela adrenalina que causa principalmente em setores mais vulneráveis, com baixos rendimentos. Quem nunca assistiu ao fervor com que se raspa o boletim e de imediato se reinveste os ganhos, até se perder tudo, exceto a satisfação de ter tido um prémio. Aliás, os valores publicitados já colocam Portugal no topo dos países europeus em que mais dinheiro se gasta em raspadinhas.

Prosseguir este caminho não será um meio risonho para o financiamento futuro do país. Num futuro próximo poderemos ver as reformas patrocinadas pelos bingos, a recuperação de escolas a ser financiada pela lotaria do fim do ano letivo ou a comparticipação nacional dos projetos europeus a ser coberta pelo lançamento do jogo do bicho em Portugal.

A ideia é atrativa, embora não original e com elevados custos acrescidos. Além de legitimar comportamentos negativos na generalidade, como o acesso e uso do jogo, pode ter como consequência desviar poupanças das famílias para o trivial e acessório e reduzir disponibilidades para investir em áreas mais relevantes no momento presente, em que a situação económica deve exigir seriedade e resolução na satisfação de necessidades básicas em face da crise que se prolongará para além deste ano.