Foi este o ponto de partida para uma troca de impressões com Iva Pires, Professora Associada na NOVA FCSH e autora do ensaio “Desperdício alimentar”, publicado em 2018 pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. Se há já algum tempo percebemos as vantagens de reciclar materiais diversos para lhes dar novas vidas, porque não fazer o mesmo com os alimentos que ainda estão adequados para o consumo e deitamos para o lixo?
“Doggy bag” ou “Gourmet bag”, independentemente do que lhe chamarmos qual é o seu papel?
“Doggy bag” ou “Gourmet bag” são algumas das designações para as caixas que estão disponíveis em restaurantes e permitem ao consumidor, caso o deseje, trazer para casa o que sobrou da sua refeição. Enquanto os excedentes que ficaram na cozinha sem serem servidos podem ser doados, e cada vez mais restaurantes e cantinas o fazem, os que foram servidos vão obrigatoriamente para o lixo e só nós podemos dar-lhes uma segunda oportunidade pedindo uma caixa para os levar para casa.
Os “doggy bags” começaram a ser utilizados nos EUA durante a II Guerra Mundial quando, pela escassez de comida, os donos de animais domésticos começaram a pedir as sobras de comida para levar para casa para os alimentar. Com o aumento das porções servidas nos restaurantes, os consumidores começaram progressivamente a usar estas caixas para levar para casa as sobras das refeições para eles próprios comerem mais tarde. Nos EUA é uma prática usual mas, na Europa, por causa de barreiras culturais, o seu uso não está ainda muito difundido.
Mas a situação está a mudar. Em França, desde 2017, uma nova legislação, integrada na estratégia de combate ao desperdício de alimentos, torna obrigatório que os restaurantes de maior dimensão disponibilizem estas caixas aos consumidores que as pedirem. O seu uso foi testado durante a Cimeira da COP21, sobre as Alterações Climáticas, que decorreu em Paris em 2016, durante a qual 100 restaurantes ofereciam estas caixas. Ao mesmo tempo, foi criado um termo considerado mais adequado, o “le gourmet bag” em vez do “doggy bag“, que numa tradução simples significa “caixa do cãozinho”, com o objetivo de quebrar barreiras culturais, já que levar as sobras ainda está associado a um estigma de carência de alimentos em casa e muitos consumidores não se sentem confortáveis no momento de as pedir.
Para estimular o seu uso e retirar qualquer conotação negativa também na Dinamarca o Stop Wasting Food (Stop Spild Af Mad), o maior o movimento contra o desperdício de alimentos, fundado em 2008 por Selina Juul, propôs a designação de Goddie bag em lugar de Doggy bag. Desde 2013, em associação com a Unilever Food Solutions, distribuíram gratuitamente mais de 60 mil destas caixas em mais de 200 cafés e restaurantes dinamarqueses. Em Itália, será lançada uma campanha pública, com o custo estimado de um milhão de euros, para promover o uso de caixas que permitam aos consumidores levar as sobras das suas refeições dos restaurantes para casa. Em Portugal, uma iniciativa da LIPOR permitiu distribuir nos restaurantes aderentes da região do Porto, no âmbito do projeto “Embrulha”, caixas para serem distribuídas de forma gratuita aos clientes que quisessem levar para casa os alimentos que não tinham sido consumidos. E é cada vez mais frequente não só os restaurantes disponibilizarem estas caixas como os consumidores as pedirem.
Sempre que pedirmos uma destas caixas estamos a contribuir para reduzir a quantidade de resíduos urbanos que têm que ser recolhidos, transportados e acomodados em aterros, e os respetivos custos, e estamos a contribuir para reduzir o impacto ambiental do desperdício alimentar, mas também ficamos a ganhar (tempo e dinheiro) ao levar para casa uma refeição pronta a consumir. Eis uma forma simples de cada um de nós contribuir para reduzir o desperdício alimentar.
Desde 2016 que a legislação francesa obriga os supermercados (com uma área superior a 400m2) a assinar contratos com instituições de solidariedade. Ou seja, estão proibidos de desperdiçar os alimentos que não vendem. Em Portugal existem grupos de pressão que trabalhem nesse sentido?
Com efeito, em França, os supermercados de maior dimensão, com uma área superior a 400 metros quadrados, estão proibidos de desperdiçar alimentos que não vendem, mas ainda estão em condições de serem consumidos. Uma legislação aprovada pelo Senado obriga-os a doar todos os alimentos que se aproximem do final de prazo de validade a instituições de solidariedade e aos bancos alimentares com os quais devem previamente estabelecer protocolos para agilizar esse processo. Caso não o façam podem incorrer no pagamento de multas superiores a 75 mil euros.
Por um lado, podemos compreender o impacto desta legislação, pois como está orientada para as grandes superfícies a quantidade de alimentos resgatados do lixo e que podem ser doados a famílias em situação de insegurança alimentar é muito elevada, ao mesmo tempo que se reduz o volume dos resíduos urbanos. Por outro lado, não me parece que a atitude mais correta seja a punição. O desperdício deve ser reduzido estimulando a mudança de comportamentos de forma permanente, por exemplo, através de campanhas de informação para que os consumidores percebam o que está em causa quando deitam alimentos par o lixo. As multas podem existir num determinado momento e noutro, por qualquer razão, serem eliminadas. Isso pode criar a dúvida “se a multa foi eliminada então já não há problemas em desperdiçar alimentos?”.
Em Itália, por exemplo, a legislação está a ser alterada no sentido de inverter a situação atual na qual é mais simples e mais barato deitar excedentes de alimentos para o lixo do que doá-los. Assim, ao contrário de França, que adotou uma postura punitiva contra o desperdício, uma nova legislação, aprovada por maioria no Parlamento em 2016, vai no sentido de encorajar a doação, que até então era demasiado burocrática, não só facilitando o processo como dando incentivos fiscais às empresas doadoras e reduções generosas nos impostos sobre a recolha de lixo, proporcionais à quantidade de alimentos doados. O projeto de lei também facilita a doação de alimentos, permitindo distribuí-los, mesmo que tenham passado a data “consumir de preferência antes de” mas não apresentem riscos para a saúde dos consumidores.
Em Portugal não faltam exemplos de boas práticas e todas as grandes cadeias de distribuição estão, de forma voluntária, a dar o seu contributo para reduzir o desperdício alimentar. A pressão da sociedade civil, sobretudo durante a crise económica que o país atravessou, na qual muitas famílias ficaram em situação de insegurança alimentar, foi fundamental para esta mudança de atitudes.
Fruta Feia, Zero Desperdício e Refood são exemplos de que é possível mudar de hábitos e construir uma sociedade mais equilibrada. O que ainda falta fazer?
Um Relatório do Tribunal de Contas Europeu (TCE, 2016) centrou-se na avaliação das ações de prevenção e de doação, por considerar que são as formas privilegiadas de luta contra o desperdício alimentar. Na minha opinião, o Governo e a sociedade civil podem cooperar e complementar-se no desenvolvimento destes dois tipos de ações de combate ao desperdício alimentar.
A forma mais sustentável de combater o desperdício de alimentos é evitar produzi-lo. Nesse sentido campanhas de sensibilização e informação, preferencialmente de âmbito nacional e nesse caso da competência do Governo, são muito importantes. Elas estão previstas na Estratégia Nacional de Combate ao Desperdício Alimentar, que foi aprovada em 2018.
Mas a sociedade civil teve, e continua a ter, um papel relevante no combate ao desperdício alimentar em Portugal. Na sequência da recente crise económica e social que colocou muitas famílias em situação de insegurança alimentar surgiram movimentos da sociedade civil e organizações não-governamentais (ONG) com o objetivo de resgatar os excedentes alimentares e distribuí-los diretamente ou através de IPSS às famílias carenciadas.
A Dariacordar/Zero Desperdício, por exemplo, teve um papel fundamental quando em 2008 o seu mentor, António Costa Pereira, comandante da TAP, lançou uma Petição que questionava as dificuldades em doar alimentos que acabavam no lixo quando muitas famílias em Portugal poderiam beneficiar deles. Esclarecidas as questões sobre as normas de higiene alimentar e sobre os procedimentos de segurança que devem ser respeitados na doação de alimentos, lançou, em 2012, a Zero Desperdício.
A rede que se estende a todo o país e que inclui atualmente 310 doadores, já resgatou do lixo mais de 6 milhões de refeições que foram distribuídas a 78 recetores, evitando 3.037 toneladas de resíduos orgânicos e a emissão de 12.756 toneladas de CO2. A Dariacordar/Zero Desperdício também tem atuado na prevenção e educação, ou seja, no início da pirâmide, através de uma coleção de livros infantis, que fazem parte do Plano Nacional de Leitura, e que discutem não só o desperdício de alimentos como as vantagens de uma alimentação saudável.
A REFOOD, foi criada em 2010 por Hunter Halder, um cidadão norte-americano a viver em Lisboa, com o objetivo de eliminar o desperdício de alimentos e a fome. Atua apenas com base no trabalho de voluntários que recolhem excedentes alimentares de doadores e os distribuem por famílias carenciadas. Atualmente tem 25 núcleos com 900 parceiros de fontes de alimentos em todo o país e, com o apoio de quatro mil voluntários, resgata cerca de 46 mil refeições por mês que distribui a 2.500 beneficiários.
A cooperativa de consumo Fruta Feia, cujo lema é “Gente bonita come fruta feia”, criada em Portugal em 2013, é um exemplo de um projeto de empreendedorismo social e sustentável que pretende atuar na mudança de comportamentos. As frutas e os legumes estão entre os alimentos que mais se desperdiçam e as famílias dão um contributo relevante, em parte consequência da “ditadura da estética”.
A preferência dos consumidores por produtos “bonitos” conduz os grandes distribuidores a fazer uma triagem rigorosa deixando nos produtores todos os frutos e legumes que consideram não cumprir essas exigências. Este desperdício não é justificável, mas o certo é que se impôs uma ditadura da estética onde, aparentemente, o aspeto exterior é mais importante do que a qualidade e o valor nutricional. A fruta e os legumes “feios”, que nasceram “tortos”, fora do tamanho (demasiado pequenos ou demasiado grandes), com manchas na casca, perdem valor comercial nas grandes cadeias de distribuição e os agricultores têm dificuldade em escoá-los para o mercado.
A Cooperativa Fruta Feia permite dar uma nova oportunidade a esses legumes e frutas que os produtores não conseguiam colocar nos circuitos de comercialização tradicionais. Eles são depois usados para compor cabazes que são distribuídos, por um preço mais baixo, às as famílias inscritas na cooperativa. Também já é frequente encontra-los nos grandes supermercados como neste caso em França.
Consumir frutas e legumes “feios” permite, para além de economizar os recursos associados à sua produção (água, terras cultiváveis, energia e tempo de trabalho), gerar valor para os agricultores e para os consumidores, e ao mesmo tempo sensibilizá-los para a necessidade de adotar padrões de consumo mais sustentáveis. Ou seja, todos ficam a ganhar, o ambiente, os produtores e os consumidores.
Estes são alguns bons exemplos do que está a ser feito em Portugal. Contudo, é necessário envolver mais as pessoas e para isso é preciso elaborar e lançar uma ampla campanha de informação sobre o tema do desperdício e da forma como cada um de nós pode ser envolvido no seu combate, pois de uma maneira geral as pessoas não têm ideia da quantidade de alimentos que desperdiçam nem de quanto estão a perder ao deitá-los para o lixo ou do seu impacto ambiental.
Essas campanhas de sensibilização e de informação devem ser orientadas para quem? Como no caso da reciclagem os mais novos podem ensinar os mais velhos?
A prevenção é a melhor forma de combater o desperdício de alimentos, é a mais sustentável do ponto de vista económico e ambiental. Reduzir as perdas e o desperdício alimentar tem inúmeras vantagens, pois permite poupar dinheiro aos agricultores, às empresas de distribuição, às famílias, aos países que importam alimentos, cria a oportunidade para alimentar mais pessoas, reduz a pressão sobre os recursos naturais como a água, o solo e a perda de biodiversidade e reduz o contributo da agricultura nas emissões de GEE e desta forma nas alterações do clima. Se já estamos habituados a reciclar vidro, plástico e embalagens de plástico, cartão e papel, porque não o fazemos com os alimentos?
Em Portugal, a campanha de sensibilização para a reciclagem de lixo que se focou nos mais novos que depois ensinaram os mais velhos e conduziram a uma mudança de comportamentos é frequentemente considerada como um bom exemplo. No caso do desperdício alimentar, como este acontece ao longo de toda a cadeia penso que essas campanhas deveriam ser o mais amplas possível e orientadas, com mensagens e informação distintas, para todos os sectores, desde a produção ao consumidor. Contudo, investir nos mais novos pode ser uma boa opção, mesmo porque estudos apontam para elevados volumes de desperdício alimentar nas cantinas escolares. O tema do desperdício alimentar convoca questões económicas, sociais, ambientais e éticas e assim poderia ser introduzido nos curricula escolares em várias disciplinas.
As mais óbvias parecem-me a Geografia (o conceito de food miles e a proveniência dos alimentos), a economia (o custo económico do desperdício de alimentos), as línguas (selecionando textos de leitura que abordem estes temas) e a filosofia (as questões éticas decorrentes da forma tão negligente como deitamos alimentos para o lixo ao mesmo tempo que muitas crianças e famílias inteiras não têm acesso à quantidade de alimentos suficientes para providenciar o seu bem-estar), mas outras disciplinas poderiam também ser utilizadas.
Este tema poderia ainda ser discutido em conjunto com o da alimentação saudável e desenvolvido em atividades em hortas urbanas. Por exemplo, em Singapura foi lançado um projeto-piloto de dois anos, “Love Your Food @ Schools”, em dez escolas, para incentivar estudantes, funcionários e cantinas escolares a reduzir a quantidade de desperdício de alimentos que geram e estimular o uso de compostores locais para tratar os restos alimentares e produzir composto para as hortas urbanas.
Com frequência as campanhas são orientadas para as famílias, como a Love Food Hate Waste no Reino Unido pois, como vimos, todos os estudos as apontam como sendo elas quem mais contribui para o volume total de desperdício, centrando-se no custo desse desperdício para o orçamento familiar. Por exemplo, em Londres a campanha teve como mote “pode poupar até 50 Libras por mês se deitar menos comida fora”.
Quem desperdiça mais alimentos? E em Portugal qual é a situação?
Quantificar o desperdício alimentar não é uma tarefa fácil. Entre os principais problemas está o facto de não existir ainda uma definição consensual sobre o que é o desperdício alimentar e o que incluir no momento de o quantificar, apesar dos esforços das Nações Unidas, da OCDE, da União Europeia e da própria academia. Por exemplo, a FAO, a Agência para a Alimentação das Nações Unidas, distingue perdas de alimentos que ocorrem no início da cadeia alimentar, durante a fase de produção ou pós-produção, e o desperdício, que inclui os produtos que chegam ao final da cadeia, à distribuição e ao consumo, em boas condições de serem consumidos, mas mesmo assim não o foram por terem sido descartados.
A UE define o desperdício alimentar no âmbito da legislação sobre resíduos enquadrando-o na Diretiva Quadro dos Resíduos: “resíduos alimentares” são os alimentos destinados ao consumo humano, que são retirados da cadeia de produção ou de abastecimento a fim de serem deitados fora ao longo de toda a cadeia. Assim, o que existem são estimativas (sobre um setor específico da cadeia alimentar, uma cidade ou um país) mas que, por utilizarem metodologias diferentes, não podem ser comparadas. Contudo, têm um aspeto em comum que é o facto de todos apontarem para volumes de desperdício de alimentos muito elevados.
Na UE após um estudo preparatório de 2010 foram elaboradas novas estimativas, em 2016, que apontam para um total de 89 milhões de toneladas de alimentos adequados para consumo humano perdidos ou desperdiçados por ano, sendo as famílias (47 milhões de toneladas, correspondendo a 53,6 % do total) e o setor do processamento e da transformação (17 milhões de toneladas, correspondendo a 19,4 % do total) os que mais contribuem, representando 73% dos resíduos alimentares da União Europeia. Dos restantes 27 por cento dos resíduos alimentares, 11 milhões de toneladas (12%) provêm do serviço de alimentação, 9 milhões de toneladas (10%) da produção primária e 5 milhões de toneladas (5%) da distribuição.
Contudo, os autores do relatório referem que se trata de uma estimativa, que os dados variam muito de país para país e que em alguns casos, como na produção, a qualidade dos dados não é elevada pois apenas quatro Estados-membros forneceram informações, pelo que existe uma incerteza considerável em relação à estimativa para este setor.
Portugal surge na lista dos países em que a informação é escassa. Existe apenas uma estimativa para toda a cadeia alimentar, do campo ao garfo, desenvolvida pelo PERDA (Projeto de Estudo e Reflexão do Desperdício Alimentar) em 2012, que apontava para cerca de um milhão de toneladas de alimentos perdidos ou desperdiçados por ano ao longo da cadeia, representando cerca de 97 quilos por habitante/ano, dos quais 31% provêm dos consumidores.
Inquéritos a famílias identificaram que os alimentos que mais se desperdiçam são, por ordem decrescente, os hortícolas, os cereais, as frutas e o leite e produtos lácteos. Tratando-se de um primeiro estudo exploratório era urgente fazer a sua atualização para identificar onde, quanto e porque se desperdiçam alimentos em Portugal.
Esse seria um primeiro passo para a elaboração de campanhas mais eficientes, orientadas para encorajar processos de mudança de comportamentos, exemplificando com as boas práticas que já existem e envolvendo todos na coconstrução de soluções para reduzir o desperdício alimentar, que é também um dos objetivos da Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas.
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