O mundo é, já se sabe, cada vez mais digital. A revolução tecnológica que chegou às nossas casas através de um computador – na altura, um pequeno monstro composto por vários elementos volumosos (um monitor do tamanho de uma pequena televisão, teclado, torre maior e mais pesada do que uma torradeira) e que ocupava uma secretária inteira – espalha-se agora dos nossos telemóveis (há muito com capacidades superiores às dos monstros a que me referi antes) para os carros, televisões e frigoríficos.

A internet une todos estes dispositivos, fazendo-os comunicar e analisar os nossos comportamentos, criando uma identidade digital com base em todos os nossos passos online (e até alguns offline).

Este fim-de-semana, juntamente com outros millennials meus amigos, discutíamos o algoritmo do Instagram e como este pode diminuir a exposição dos utilizadores quando estes optam por uma conta business. Instintivamente, parece um resultado indesejável – uma conta business, para um utilizador que a procura usar como uma ferramenta de divulgação, deveria ter um alcance maior. Ao invés, a empresa tecnológica vê nesta acção uma maior predisposição do utilizador a gastar dinheiro na sua conta e, por isso, o algoritmo da aplicação reduz o número de contas a que uma determinada publicação chegará organicamente. Não é muito simpático, mas não me parece constituir um problema ético de grande medida.

No entanto, quer o Facebook, quer a Google parecem determinados a ter um impacto mais repreensível e nocivo na sociedade. A empresa de Zuckerberg (que detém o Instagram) foi, na semana passada, acusada de deixar os números de telefone de milhões de utilizadores num servidor aberto, sem qualquer protecção. Apesar de, supostamente, há um ano terem sido tomadas medidas pela gigante para proteger os dados dos seus utilizadores, a verdade é que, para 400 milhões de pessoas, a probabilidade de serem hackadas ou vítimas de fraude bancária aumentou substancialmente graças aos nossos amigos da Hacker Way, 1.

Já a Google foi apanhada a escutar as conversas dos seus clientes, isto depois de acontecer o mesmo com a Apple ou a Amazon. E, ainda que tal aconteça com a defesa legal da aceitação, por parte do utilizador, dos termos e condições de utilização (que levam tempos infindáveis a ler e interpretar, se houver alguém no mundo que realmente o faça) e sejam processos indispensáveis para o desenvolvimento e aperfeiçoamento das tecnologias de inteligência artificial, são situações, no mínimo, geradoras de suspeita e desconforto para quem as utiliza.

Se esta invasão da privacidade dos clientes é indesejável e eticamente dúbia, a manipulação de resultados mina por completo a credibilidade destas empresas. A Shifter, por exemplo, faz eco de um anúncio no Google criticando a sua política de publicidade, que prioriza conteúdos pagos face aos resultados orgânicos da pesquisa; o escândalo da Cambridge Analytica foi por demais uma evidente demonstração do poder destes algoritmos em identificar perfis politicamente valiosos (os de eleitores indecisos) e influenciá-los; e o Facebook continua a fazer asneira, já que foi apanhado a mentir ao Parlamento holandês sobre a possibilidade de financiar campanhas políticas de países que não os de residência do utilizador ou a minar a concorrência dos seus adversários.

O que vale é que, mesmo com eleições à porta, o português quer saber mais de futebol – os russos que se preocupem em dizer mal do Benfica, que nos afecta mais do que António Costa.

O ponto em comum destas empresas, além da área de negócio e das políticas moralmente questionáveis, é a quota de mercado que lhes permite actuar em quase-monopólio e, consequentemente, escapar impunes de todos estes percalços. A Google tem 90% do mercado dos motores de busca (fora todas as outras áreas de acção que constituiu nos últimos anos), o Facebook tem uma “população” maior do que qualquer país no planeta, a Apple é, há anos, a empresa mais valiosa do mundo.

Urge legislação séria para abordar estes problemas, uma que ultrapasse regulamentos de dados cheios de cláusulas e alíneas infinitas que nenhum consumidor leia, mas mais virada para a actuação das próprias empresas no mercado, que preveja multas ligeiramente mais pesadas do que cinco mil milhões para empresas que facturam 15 mil milhões de dólares num trimestre. E se calhar também não era má ideia promover mais debate e informação séria, não-alarmista e concisa sobre este tema – é que neste caso nem dá para dizer ao pessoal para irem “ver à net”.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.