Em Portugal, a religião de facto funciona por temporadas. E este fim-de-semana começou a de 2018/19.

Neste país à beira-mar plantado, o futebol reveste-se de uma importância dificilmente negável ou comparável a outros países, em que o desporto enquanto actividade social de relevo abrange, normalmente, mais do que uma modalidade, e o apoio popular e destaque dado às equipas não se limita a um trio imutável e intocável. É, no fundo, uma caricatura da nação, em que os melhores ombreiam com a elite mundial, fazendo muito com recursos limitados, mas em que o panorama geral é de mediocridade e, claro, a sempre presente corrupção, já mais portuguesa do que o Fado.

Ainda assim, de vez em quando somos uma terra de pioneiros. Na última década do século XX, dois sistemas tecnológicos partiram de Portugal para conquistar o mundo: o sistema pré-pago de comunicações móveis e a Via Verde. Caramba, torna-se complicado lembrarmo-nos que, há 500 anos atrás, desenvolvemos técnicas e instrumentos que, aliados a uma ambição e audácia louváveis, nos permitiram descobrir meio mundo. E, há um ano, fomos também pioneiros na utilização do vídeo-árbitro (VAR), que prometia acabar com as infindáveis discussões sobre a forma como a equipa daquele nosso amigo fanático havia ganhado no Sábado passado.

No entanto, e como muitas outras bem-intencionadas iniciativas lusas, o VAR foi, no mínimo, pouco pensado. Em vez de eliminar (ou reduzir drasticamente) o erro humano, externalizou-o para um indivíduo fora do campo, observador num monitor em Oeiras, e perdeu-se uma boa oportunidade de mudar significativamente o paradigma futebolístico.

Ora note-se: no futebol, o diálogo atleta-árbitro atinge níveis (em intensidade e conteúdo) dificilmente observáveis noutros desportos de topo – no ténis, por exemplo, quando um dos jogadores discorda da decisão do árbitro, pode contestá-la oficialmente, levando à revisão da mesma e, caso o juiz estivesse correcto, o atleta perde um dos três challenges com que é dotado ao começo da partida. Isto responsabiliza os atletas, previne diálogos inúteis fruto da frustração ao invés da razão – e torna o jogo mais justo.

Mas o ténis é um desporto objectivo, com pouco espaço à interpretação humana. Ora, se uma expulsão ou um penalty raramente são indiscutíveis, o mesmo não se poderá dizer de um fora-de-jogo ou pontapé de baliza/canto. E, se no caso do primeiro, esperamos ainda uma tecnologia infalível de análise, a diferença entre um pontapé de baliza ou um canto é, normalmente, bastante óbvia. Sendo os cantos uma fonte clara de lances de golo (no Mundial’18, por exemplo, registou-se um recorde de 26 golos originados de canto), parece-me óbvio a falta de rigor e possíveis consequências que surgem desta situação.

Outra assimetria clara prende-se com a capacidade tecnológica dos diferentes estádios da I Liga. Enquanto que equipas que joguem em estádios construídos para o Euro2004 beneficiam de condições de topo, mais de 50% das equipas jogam em recintos antigos, onde as possibilidades de filmagem são consideravelmente mais limitadas e, consequentemente, a análise a cada lance será, a priori, condicionada por menos meios disponíveis. Numa época longa e com 34 jogos, não será que esta assimetria de informação pode influenciar a classificação final?

Há algumas décadas, poder-se-ia argumentar que “é só um jogo”; hoje em dia, é um negócio de muitos milhões, com um impacto económico relevante no nosso país, em que meia dúzia de sociedades anónimas facturam quantias exorbitantes com a venda de alguns dos seus activos. E se o fanatismo não irá desaparecer por decreto, não será, certamente, um remendo tecnológico mal pensado que o irá diminuir. Senhores da Liga, a bola está do vosso lado.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.