No dia em que nasceu, “Hitler ocupava quase toda a Europa e o Exército alemão estava a alguns quilómetros de Moscovo”. Em Portugal, “Salazar mandava”, e por causa da “irrelevância estratégica” do país, a “violência da Segunda Guerra Mundial” era, apesar das “senhas de racionamento” e da “pobreza geral”, apenas matéria de notícias trazidas de longe pela “telefonia”. Teve a “sorte” de ter nascido aqui e em 1941 em vez de “na Alemanha, em França, em Itália, na Roménia, na Hungria, na Bulgária ou em Espanha” por “volta de 1920”, mas só no sentido em que essa “sorte” lhe permitiu estar a salvo do extermínio. De resto, o país “autoritário e austero do Estado Novo” era tudo menos recomendável.

Não era apenas “a PIDE” ou “a censura” ou os “mil tiranetes por aqui e por ali”. Era, como sempre fora, “o atraso” – a “substância da nossa identidade”, a “nossa genuína natureza”. Em Lisboa, “cidade apática e provinciana”, “ainda existiam os eléctricos de estribo”, as drogarias e mercearias “tresandavam a metros”, criadas, lavadeiras e as mais variadas serviçais passavam como herança de “senhora” para “senhora”, ou vinham “de uma qualquer aldeia de província” para uma “casa” onde lhes era exigida “cabeça no lugar” (ou seja, abstinência sexual) e disponibilidade para “ir levando a sua bofetada (ou bastante pior)”. Não muito longe da capital, “a dez ou doze quilómetros das Azenhas do Mar”, no “fim do mundo” onde “passava as férias”, a “esmagadora maioria da população nunca fora a parte alguma”, não havia “electricidade nem água canalizada”, as “mulheres envelheciam aos 30 anos” e “os homens aos 40”.

No dia em que Kennedy morreu, lá longe em Dallas, ele “estava num café à espera de um amigo e ao balcão meia dúzia de cavalheiros com gravatas discutiam a notícia que a Emissora Nacional acabara de dar”. Foi “um choque pessoal”, “como se o tivesse conhecido”. “O homem”, nesse ano de 1963, “representava a modernidade” que ele não via mas desejava ver em Portugal. Acabara de entrar para a revista O Tempo e o Modo, cujo “índice de colaboradores” se viria a ler “como a lista das glórias oficiais da democracia”, e na qual “absurdamente” sonhavam (alguns) fazer do país uma democracia como as democracias europeias, com extravagâncias como “democratas-cristãos” e “socialistas” burgueses e “anti-soviéticos”. Enquanto pôde, por lá continuou a escrever, e de tudo o que por lá se foi publicando, o que continua legível é dele.

No dia em que Salazar “caiu da cadeira”, estava prestes a partir para Oxford, onde Portugal só chegava “em três linhas na décima sétima página do Times”, que compreensivelmente não o “excitavam”. Fora “algumas paixões tumultuosas e a geral escassez da fêmea da espécie”, a “vida de Oxford” não lhe podia parecer “mais doce”. Portugal era apenas destino de férias e visitas à Biblioteca Nacional, e o “marcelismo” que por cá entusiasmava os “miúdos” a quem “o professor” alimentara esperanças de reconhecimento e lugares (alguns andam ainda por aí, aos beijinhos e abraços a quem queira tirar “selfies” com eles), deixou-o “incólume”, sem ver nele qualquer oportunidade – perdida ou aproveitada – e nunca lhe parecendo que “pudesse durar”. Durou ainda o tempo suficiente para ele acabar a sua tese, e para regressar a Lisboa para “dar umas vaguíssimas aulas no Outono de 1973”, mas não durou muito mais.

No dia em que “chegou” o “25 de Abril”, chegou “a tempo”. Ele e a sua geração “andavam pelos trinta anos”, estavam “arrumados” numa qualquer “profissão”, e tinham a vida pela frente. “Íamos”, escreveu ele décadas mais tarde, “finalmente mudar Portugal”. Não mudaram grande coisa.

No princípio de 1978, questionado pel’O Jornal acerca de como seria Portugal “no ano de 2002”, ainda acreditava que “a integração de Portugal na Europa” poderia “reduzir a proporções muito mais modestas” aquela que julgava ser “a única continuidade na História Portuguesa moderna”: a “centralização e concentração do poder no Estado, e o progressivo domínio deste sobre a sociedade civil”. Em 2002, se “as coisas” tivessem “corrido bem”, seríamos “mais governados pela nossa junta de freguesia, pela nossa Câmara e por Bruxelas do que por Lisboa”, e “mais por nós do que por eles”, e que se fosse “assim”, viveríamos “melhor”.

A pouco mais de cinco anos dessa redonda data, já olhava para trás lamentando ter “espatifado a vida” – e visto “alguns amigos espatifarem a deles” – a tentar fazer “Oxford em Lisboa” e “um PSD igual ao partido Conservador inglês”, “Hollywood no Lumiar” e o “o jornalismo de Joan Didion no equivalente indígena da New York Review of Books ou do Saturday Evening Post”. As “fantasias” com que tinham “gasto os miolos e o tempo” tinham o fatal problema de “ignorar” a “irremediável pequenez de Portugal”. “Não vivíamos”, penitenciou-se um dia nas páginas de um jornal, “entre o Minho e o Algarve. Vivíamos na Europa ou na América ou numa terra imaginária, sem uma exacta localização geográfica”. Chegado a 2002, notava “o pouco que no fundo” Portugal mudara. A crise a que se assistia na altura lembrava “outras crises” pelas quais Portugal passara nos séculos XIX e XX que ele estudara, “com os mesmos foribundos protestos contra as despesas do Estado, contra o excesso de funcionários públicos, contra as clientelas e em geral contra a «roubalheira»”.  E onze anos depois, olhando para a crise que o país então vivia (e da qual nunca verdadeiramente saiu), concluía que fora precisamente a vontade de “modernizar” Portugal (de “corrigir a injustiça do salazarismo”) a deixar o país num “irremediável sarilho”.

Tudo porque, com ou sem a “Europa” da qual esperara a mudança (e que até contribuíra para o problema, ao “dar – com o euro – a chave do banco a uma populaça famélica”), “num país pequeno, pobre e periférico” como o nosso “a economia não cresce o suficiente para permitir a ascensão social da classe média”, fazendo com que “o Estado” fosse chamado a “lhes fornecer um modo de vida”. Como “os contribuintes não são um poço sem fundo”, o “dinheiro para esta estranha caridade acaba por não chegar”, sendo preciso “recorrer à dívida”. Como “a modernização é, por natureza, contínua”, é sempre preciso contrair mais dívida. “De quando em quando”, a crise “volta” – volta, não “nasce” – “normalmente provocada por exigência do estrangeiro”.

“Mudar” fora o seu desejo durante décadas, e podia agora até ser uma necessidade, mas para ele nem o desejo nem a necessidade implicavam possibilidade. A “classe média” que “vive do Estado” não podia – como não pudera “na Monarquia Constitucional e durante a República até à ditadura de Salazar”, abdicar pacificamente do seu “estatuto” da sua “inesperada prosperidade”. A “insegurança” e a “pobreza” que eram para ele a “grande e genuína tradição portuguesa” trazem “sempre” consigo “o horror ao risco, o compadrio, a obsessão com o Estado e a ânsia de aproveitar as vacas gordas”. Só se poderia “mudar de vida” ganhando menos, “bastante menos, para não gastar o que não há”, e fazendo bastante mais do que “fundir e refundir os «serviços»” dos vários Ministérios. Mas “no momento em que se atrevesse a uma barbaridade destas”, qualquer governo esbarraria na expectável resistência da “classe média” que “correria rapidamente com ele”, e lançaria o país “no caos”. A crise não deixava margem de manobra a ninguém, e perante ela Portugal podia apenas esperar “20 anos de vacas magras e de cinismo ou desespero”. A existência de um qualquer “remédio” era duvidosa”, e a sua hipotética aplicação “talvez mortal”.

No dia em que morreu, duvido que tivesse mudado de opinião.