O parlamento europeu está a avançar com o MiCA (Regulation on Markets in Crypto-Assets), a regulação específica para os tão discutidos criptoactivos. Apesar de ser uma legislação necessária e interessante, está muito aquém do que precisamos para melhorar a competitividade das nossas economias quando comparado com o que se está a passar noutras geografias, nomeadamente nos EUA.
É verdade que precisamos de mais legislação para proteger os investidores, e a diferença entre a Europa e os EUA é abismal. Nos EUA, qualquer investimento com expectativa de mais-valias que inclua a contribuição de outrem tem sempre por base um título devidamente regulado.
Já na Europa, com a directiva para os mercados de instrumentos financeiros em vigor desde Junho de 2014 (MiFID II), e implementada segundo indicações da ESMA (European Security and Markets Authority), apenas os títulos relativos ao investimento acima de determinado valor estão sujeitos a todas a protecções. Esse valor varia entre 1M€ e 8M€ dependendo do país em causa, e em Portugal é 5M€. Só estes títulos é que estão sujeitos à existência de um prospecto, e todos os investimentos abaixo desse valor são considerados crowdsourcing, com todas as implicações na falta de protecção ao investidor que daí advêm.
Alguns países têm regras específicas para o crowdsourcing, e outros, nem por isso, como é o caso de Portugal (segundo a própria ESMA). Ora, com tudo o que se tem passado em torno do lançamento de criptomoedas e outros criptoactivos, em particular com base nos tão falados ICO (Inicial Coin Offerings), entre outros, é apenas natural ver os reguladores no nosso espaço económico avançar no sentido da protecção dos investidores.
Para já, o ponto de situação é o seguinte. Depois da proposta avançada em Setembro de 2020 pela Comunidade Europeia, esta passou à discussão no contexto do Parlamento Europeu e espera-se a sua promulgação até 2023, devidamente transposta para a nossa legislação. Quando isso acontecer, os vários tipos de criptoactivos identificados no Diploma passam a ser reconhecidos como instrumentos financeiros e terão de obedecer às regras agora propostas, deixando assim de serem considerados crowdsourcing. Em particular, terá de haver responsabilização pela emissão, custódia e garantia dos direitos associados a cada criptoactivo em particular.
Na verdade, é o que acontece, já hoje, com todos os instrumentos financeiros, e é esse o problema. Há mesmo quem defenda a regulação da #DeFi – finanças descentralizadas baseadas em tecnologia blockchain – na linha do próprio MiCA, propondo, desde já, uma camada adicional de regulação especialmente adaptada ao que a maioria das pessoas chama de serviços descentralizados. Pois bem, não é esse o caminho.
O que o MiCA não resolve
A essência da regulação proposta pelo MiCA é responsabilização através da custódia dos criptoactivos para garantir a execução dos seus direitos associados. É uma solução em linha com os modelos de regulação actuais sem aproveitar o mundo novo proporcionado pela auto-execução ecossistémica. Como uma blockchain não carece de custódia para garantir a execução do direito, é irrelevante legislar nesse sentido. Não só tal não é necessário, como desvirtua a sua natureza, pois, com a obrigação de custódia, os criptoactivos vão ter os direitos que representam aplicados por entidades específicas e fora da auto-execução do direito. Ora, é exactamente isso que não queremos, pois, tratados como todos os outros, o impacto dos criptoactivos na economia não fará grande diferença. Não obstante, a economia actual carece de identificação jurídica com responsabilização auditável.
A blockchain é uma tecnologia nova baseada num sistema distribuído no qual podemos confiar (Web of Trust) devido à auto-execução ecossistémica, levando muita gente a acreditar que os Smart Contracts se comportam como verdadeiros contratos (nota: tanto quanto sei, ainda nenhum ordenamento jurídico avançou nesse sentido e sem isso não há reconhecimento legal possível, nem sequer nos estados de Wyoming e Delaware nos EUA, habitualmente os mais disruptivos). Porém, o pseudo-anonimato dos tokens “parece ser incompatível” com a identificação de direito necessária à protecção dos investidores, e terá sido provavelmente essa a razão por detrás da solução baseada na custódia proposta pelo MiCA. Então como garantir ao mesmo tempo a auto-execução ecossistémica com total liberdade, associada a uma identificação jurídica que permita a responsabilização e o reconhecimento do direito no contexto da economia actual?
Sim, porque sem esse reconhecimento, os activos e os participantes da economia incumbente não poderão dar o salto no sentido da 4ª revolução industrial. Muitos investimentos estão a acontecer no mundo dos criptoactivos, daí o MiCA, mas se esses investimentos não criarem valor económico real, de pouco irão servir. Ora a criação de valor económico passa pela influência directa na vida das pessoas e das empresas, ambos identificados e cumpridores perante a lei, pois é essa a natureza dos estados de direito. Haverá solução?
As transacções comerciais e a transferência de propriedade na blockchain
A blockchain só faz sentido para dar suporte a ecossistemas e nunca apenas a uma só empresa. Precisamos, por isso, de exemplos sempre com pelo menos dois participantes, mas quantos mais melhor. Vamos então imaginar o que será a nossa vida quando a blockchain der suporte às trocas informação, bem como à sua salvaguarda, em (1) transacções comerciais simples e (2) transferência de propriedade. Escolhi estes dois exemplos por representarem em larga medida a maioria dos eventos subjacentes ao pulsar das economias. Na verdade, a transferência de propriedade é uma transacção comercial acrescida de registo para prova de direito, seja ele qual for.
Uma transacção comercial simples, seja por exemplo a compra de um produto, seja o pagamento da factura da electricidade, tem necessariamente os seguintes elementos: 1) comprador e vendedor estão devidamente identificados, 2) a transacção é registada oficialmente por, pelo menos, o vendedor, e 3) são emitidos e guardados os comprovativos dessa transacção e respectivo pagamento na forma de factura e recibo. Caso o meio de pagamento seja informático, existirão terceiras partes envolvidas, nomeadamente um ou mais bancos para registar a alteração dos saldos das respectivas contas.
Além disso, para a identificação dos intervenientes, teremos de contar com números de contribuinte e eventualmente cartão de cidadão e outras informações como a morada. Ou seja, os serviços públicos envolvidos também fazem parte do ecossistema. Consequentemente, transferir a execução de uma transacção comercial no mundo da blockchain implica pensar em todos estes participantes. Analisemos então as respectivas necessidades de tratamento de informação.
Em primeiro lugar, o comprador precisa de guardar a factura para demonstrar seja a quem for que é proprietário do bem (para efeitos de desembaraço aduaneiro, por exemplo), para accionar uma garantia, ou simplesmente para poder demonstrar que não é devedor. Afinal, quantas facturas guardamos nós em casa com o receio de termos necessidade de vir a demonstrar pagamentos efectuados aos fornecedores dos nossos serviços básicos? Quantas vezes perdemos o rasto da factura que nos habilitava a uma garantia?
O vendedor também precisa de guardar a informação sobre a transacção, por exemplo para efeitos fiscais, bem como o registo dos fluxos financeiros das suas contas bancárias, para que contabilistas, revisores oficiais de contas, e o Estado, façam o seu trabalho, tendo como resultado o pagamento dos devidos impostos. A supervisão vai também verificar as contas cruzadas entre as várias entidades para verificar que tudo bate certo, seja dos fluxos financeiros, seja dos contabilísticos. Então, como imaginar uma blockchain a dar suporte a este ecossistema?
A blockchain funciona como uma terceira parte, pois é independente de cada actor particular, com a vantagem de garantir todas as propriedades desejadas para além do registo da informação. Vai, portanto, guardar nos seus Smart Contracts todos os elementos da transacção e também executar todas as regras previstas: factura, recibo, registo de pagamento, incluindo movimentações de contas bancárias, bem como o que seja necessário do ponto de vista do Estado. Na verdade, não é muito diferente do que é potenciado hoje com o sistema e-factura. A dificuldade prende-se apenas com a identificação jurídica das partes envolvidas, o que no caso do segundo exemplo, o da transferência de propriedade, é premente. Que identificação vamos guardar na blockchain? Como garantir que está correcta? Como envolver os registos legais no processo? Eis o busílis da questão.
Uma proposta para regular a auto-execução ecossistémica
Como sabemos, a interacção com a blockchain é feita com base em chaves criptográficas. São essas chaves que nos permitem executar seja o que for, desde a transferência de criptoactivos até à prova de propriedade com os famosos tokens não fungíveis. Se, por um lado, a identificação criptográfica é suficientemente completa para executar todas as transacções no mundo da blockchain, esta carece de uma forma de identificar que seja compatível com o mundo actual dos registos e da prova de direito. Pois bem, não só os dois mundos não são incompatíveis, como a blockchain é a melhor amiga do direito tal como o conhecemos!
Já aqui se falou, aliás, de identificação jurídica a propósito do RGPD e da tecnologia baseada em Smart Contracts preparada para lidar precisamente com a problemática da identificação. Já temos assim solução à vista, bastando adicioná-la à arquitectura de execução dos direitos que decidirmos suportar em blockchain, e que passo a explicar.
Da mesma forma que há uma entidade devidamente credenciada pelo Estado a fornecer certificados digitais para a assinatura digital de documentos com o Cartão do Cidadão, o mesmo vai acontecer no contexto dos Smart Contracts. Quando uma transacção carece dessa mesma identificação certificada, o Smart Contract de suporte à transacção vai forçar a inclusão do identificador respectivo, seja o número de identificação fiscal, seja outro qualquer. Além disso, caso seja necessário registar qualquer informação respeitante à transacção em qualquer órgão central, como por exemplo o registo de propriedade, vai ser esse mesmo Smart Contract também a executá-lo.
Esta arquitectura nova tem vários desafios associados, mas felizmente todos simples de ultrapassar. O primeiro é a certificação da identificação jurídica e que será feita da mesma forma que as actuais assinaturas digitais. A UE já está, aliás, a criar a respectiva infraestrutura com os chamados identificadores descentralizados, como já tivemos oportunidade de referir.
O segundo desafio é a garantia do conteúdo dos Smart Contracts de acordo com a lei, e que a regulação espera alcançar para já, à antiga, com a custódia da garantia do direito. Nada mais errado. Desta vez, os reguladores não devem poder responsabilizar ninguém pela garantia do direito, nem andar atrás dos relatórios para ver o que falhou. Será da sua responsabilidade directa a validação dos Smart Contacts associados. Sim, meus amigos, desta vez é preciso pôr as mãos na massa, com ou sem outsourcing. O último desafio será o da legislação para que as mesmas possam ser devidamente reconhecidas pela lei.
Ou seja, a solução não passa pela custódia de informação nenhuma, nem pela responsabilização à antiga por parte da regulação, mas sim na garantia de execução dos direitos, de acordo com as regras e a lei, pelos próprios reguladores. Se essas regras incluírem a necessidade de identificação jurídica, mais não temos do que legislar a esse respeito. Claro que os reguladores vão ter um papel muito mais activo no processo, e talvez esteja na altura de se prepararem para dar esse salto. Infelizmente, quer o MiCA, quer as discussões à volta dessa futura legislação, não são suficientemente profícuas (eufemismo para ler com o respectivo sorriso amarelo). No entanto, há esperança, e é por isso que a Europa se está a atrasar em relação aos EUA, mas desta vez essa interpretação vai ter de ficar para as cenas dos próximos capítulos.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.