À época estival estava consagrado o momento de pausa. O estio servia para recuperar forças, avivar tradições e usufruir de momentos de socialização profunda. Também era o tempo das leituras, como se houvesse uma interrupção dos afazeres e preocupações habituais.

O usufruto, por parte de cada vez maiores camadas da população, do direito a férias, convidava a pausas, mesmo que vividas entre portas e nos arredores de casa. O mês de agosto representava, em países como Portugal, esse intervalo.

Até ao advento da conexão permanente, persistia o direito a desligar por algum tempo das funções profissionais e mesmo do mundo em redor. As férias sem televisão, sem telemóvel e, sobretudo, sem redes sociais davam direito ao descanso. Atualmente, o conceito de férias é de tempo fora do local de trabalho, mas dedicado a acompanhar o que se passa. Assim, a interrupção ao trabalho foi desaparecendo, bem como, o tempo para usufruto ou simples reflexão.

Entre Jogos Olímpicos, guerras, negociações diplomáticas e desfechos surpreendentes nas candidaturas a eleições, o mundo move-se e a nossa atenção também.

Interrompido o verão habitual, mas acreditando que continuamos a precisar de tempo para refletir, propus-me ler três livros. Três obras sobre tempos e realidades diversas, estimulando a capacidade de o leitor lidar com aquilo que se chama “alteridade”, ou seja, a compreensão do outro, nos seus tempo e espaço. Proponho esta viagem que, decerto, nos ajudará a compreender melhor estes tempos de desassossego.

Primeiro momento – a viagem no tempo

A celebração discreta dos 500 anos sobre o nascimento de Luís Vaz de Camões pode ter sido o mote do livro da autoria de Carlos Maria Bobone, intitulado “Camões, Vida e Obra”, editado pela D. Quixote. Não se trata de um livro evocativo, mas sim de uma obra que procura lançar alguma luz sobre a vida e obra do autor que acabou por consagrar a diferenciação da língua portuguesa.

O autor ancora a sua obra numa vasta consulta e análise de fontes secundárias, e instaura um diálogo interessante entre estas. O seu objetivo é mostrar as diferentes interpretações que a documentação sobre Camões nos dá. Lança pistas de análise, cruza informação e conhecimento e, acima de tudo, indica-nos que a vida e obra de Camões ainda têm muito para descobrir.

Em vez de dar certezas, levanta dúvidas, baseadas nas diferentes perspetivas que a vida de Camões tem suscitado. Entretanto, fornece ao leitor uma viagem pela lírica camoniana, permitindo entrelaçar essa vida, meio desconhecida, com a obra produzida.

O Camões apresentado no livro vive num tempo de mudanças políticas e sociais profundas, refletidas na sua obra, mas também na diversidade de círculos literários e intelectuais existentes à época.

Recusando uma explicação simplista da realidade, o autor mostra um Camões multifacetado, produto do seu tempo, mas também construtor desse tempo, não só pela transformação linguística, mas, igualmente, pela introdução de temas socais e políticos reflexo da sua época.

Audaz na sua expressão literária, que lhe valeu reconhecimento posterior à sua obra, Camões ademais enforma a tradição literária portuguesa posterior que, por aceitação ou repúdio, influenciará.

Mais do que relembrar o autor ou lhe prestar homenagem, esta obra procura refletir sobre Camões e a sua obra. Deixando muitos caminhos em aberto, contribui para sublinhar aspetos menos conseguidos sobre a construção histórica de uma personalidade que é, também, uma personagem do imaginário português.

Segundo momento – a viagem no tempo e no espaço

A “História da China”, da autoria de Michael Wood, editada pela Temas e Debates, constitui um ótimo pretexto para viajar no tempo e no espaço.

Com uma escrita dinâmica e plena de recursos imagéticos, a que não é alheio o facto de o autor ter preparado um documentário sobre a China, o livro adquire um interesse particular por dar uma perspetiva histórica da formação política, social, económica, cultural e religiosa deste país.

Wood levanta de facto o aspeto mais surpreendente da história da China, a sua continuidade cultural e a perenidade dos esforços para a manutenção da união política do Estado chinês.

Viajando pelas diversas dinastias e chegando até à implantação da República chinesa e do regime comunista, o autor aborda os grandes momentos da história deste país. Para além disso, demonstra como o período entre 1850 e 1950 foi fundamental para que as reformas comunistas e a ascensão de uma nova China pudessem singrar.

Apesar de não trazer conteúdos novos, o livro sistematiza-os de forma a lhes dar coerência, demonstrando preocupação com as fontes e cuidado histórico, e, em simultâneo, concedendo a vivacidade que, por vezes, falta à escrita destinada a especialistas. Obra para o grande público, permite aflorar um sistema de pensamento que nos é estranho e, muitas vezes, distante.

Contudo, deixa elementos menos tratados, como o estabelecimento português em Macau, fundamental para o que se passará nas relações da China com o Ocidente nos períodos das dinastias Ming e Qing. Nesse sentido, não entra na complexa existência do império chinês num contexto asiático cada vez mais disputado pelas potências europeias.

Apesar disso, não deixa de ser uma excelente excursão sobre uma realidade tão distante daquela que conhecemos.

Terceiro momento – a viagem da memória

Mario Vargas Llosa anuncia a sua despedida da ficção com o romance “Dedico-lhe o Meu Silêncio”, editado pela Quetzal. Voltando a um tempo e espaço passados, o Peru do período do Sendero Luminoso e o final da sua luta armada, o autor leva-nos numa viagem que junta história e identidade.

Num Peru independente, mas ainda marcado pela herança colonial, base de uma sociedade profundamente desigual, cria uma personagem que, por vezes, parece ligar-se ao autor nos seus idealismos e desilusões.

A música aparece como elemento de coesão social e política e, num momento de idealismo, até parece suplantar todas as diferenças existentes na sociedade, oferecendo aquilo por que tantos peruanos e latino-americanos anseiam, um mundo mais justo.

Com reconhecida habilidade na escrita, Vargas Llosa conduz-nos através da sinuosa realidade partilhada pelo Peru com outros países vizinhos, em que o fio condutor é a música como elemento transversal a toda a sociedade. E se a música pudesse unir o que a política sempre separou? E se o idealismo pudesse resistir e tornar-se realidade? E se aquilo que nos atormenta e nos cria ansiedade só for expurgado quando se perder o ideal?

O autor levanta todas estas questões, na sua personagem, em simultâneo, apaixonada pelo seu ideal e atormentada.

Este derradeiro romance apresenta o que é e o que poderia ter sido o Peru vivenciado, mas também imaginado pelo autor. A música como pano de fundo, construtora do imaginário identitário, reabilita uma visão crioula dessa sociedade de convergência de tantos povos.

A crioulidade surge como o cimento da sociedade sem preconceitos rácicos e assenta na recorrência a personalidades reais, tornadas também personagem. Em vez da diversidade, propõe a convergência para a igualdade e unicidade.

Quarto momento – verão sem leveza

Nenhuma destas obras se encaixa na leitura leve. Todas convidam à reflexão e ao conhecimento do outro e, por isso, são propícias para o verão e para o conceito de viagem. Sobretudo, todas nos alertam para mundos complexos, identidades, por vezes, conflituantes e mundos divergentes que coexistem. São um convite a ir para além do imediato e não julgar que a realidade se confina a pequenos ecrãs.