Não se celebra um ano novo se não for para começar alguma coisa, querer algo novo para o tempo que virá até outro ano, começo e recomeço, como o balanço de um pêndulo. Formulamos desejos, apresentamos votos, tomamos decisões, prometemos persistência para um ano inteiro.

Nesse sentido, se não andarmos demasiado distraídos com os festejos, a celebração da passagem de ano é como ligar-nos ao mundo, tornar a fazer essa ligação. E poder fazê-lo é uma acção de liberdade e coragem, como a de atravessar uma fronteira. Uma das citações mais penetrantes de Hannah Arendt di-lo assim: “A coragem liberta os homens da sua apreensão com a vida, em favor da liberdade do mundo. E a coragem é indispensável porque na política o que está em jogo não é a vida, mas o mundo.”

Em vez de uma lista de desejos urgentes para 2019 — sobre o populismo global, sobre as migrações económicas, sobre os riscos apocalípticos relacionados com as alterações climáticas e delapidação de recursos vitais … —, proponho apresentar um quadro em que tem de ser feita uma escolha entre atitudes políticas alternativas que atravessam e afectam todos os nossos desejos civis: evasão ou ligação. Não por exercício retórico, mas pela percepção de que essa evasão é um dos obstáculos mais sérios a superar, anterior a todos os outros e capaz de os ocultar. A humanidade, sujeito ecologicamente global, anda evadida do mundo.

Opõe-se com frequência utopia e realismo, como sonho versus pragmatismo. Mas qualquer uma das escolhas representa uma evasão do mundo. A utopia desliga-se porque projecta uma possibilidade esquemática e abstracta, perdendo o recorte e o pormenor de uma realidade concreta e vivida de facto, muito mais complexa do que a imaginação que dela fazemos. E o realismo obceca-se pelo presente imediato, o seu retorno em maximização de interesses, assim desligado do futuro e mesmo do passado, demasiado alheios para importarem mais do que marginalmente.

Por isso, não falta apenas restaurar direitos à utopia. Falta sobretudo um realismo que englobe futuro e passado, opondo-se a um realismo do presente imediato, à escala de um ciclo de oportunidade de negócios, à escala dos interesses de uma sociedade estritamente concebida como a soma de interesses de pessoas estritamente concebidas como indivíduos presentes, que vêem o passado, mesmo se aquele de que têm memória, como um conjunto de fósseis, vestígios vagamente relacionados com o que é ser-se hoje, no limite, apenas curiosidades, além disso absolutamente desligadas. Até que se tornam súbita, demasiado tarde e catastroficamente relevantes.

Uma atitude realista, entendida enquanto respeito pela realidade inteira do nosso mundo, não fossiliza o passado nem ignora o futuro ao tratá-lo como mero alargamento do presente. Toma-os como partes de mundo a ligar, daquilo a que chamamos o “nosso mundo”, e que é uma geografia e um tempo ligados por uma comunidade de sentido e acção. Uma geografia que é uma cidade, um país, um continente, um planeta, e um tempo que é o das nossas vidas, o histórico, e o geológico.

Isto não significa necessariamente abdicar da ideia de utopia. Apenas de um certo tipo de utopias que se definem pela oposição ao respeito pela realidade e que, muito por narcisismo do pensamento, se reverteram em distopias. Curiosamente, o respeito ecológico pelo mundo tem algo de semelhante ao lado melhor do conservadorismo político e que consiste, não numa defesa do tradicionalismo e na cristalização do passado com a sua distribuição de statu quo, mas num cepticismo justificado sobre as pretensões humanas de conhecer e alterar o nosso mundo.

Hoje, diante de riscos de catástrofe ambiental cada vez mais angustiantes, o melhor do conservadorismo pode ser inspiração para o que há de mais revolucionário. Parece uma contradição mas não é. A aceleração da economia global liberal precisa de ser detida. Se esta aceleração nos evadiu do mundo, devemos agora evadir-nos dela, saltar fora: crescer menos economicamente, ou mesmo não crescer, tanto quanto for possível e razoável.

Mas também voltar a invadir o mundo no sentido preciso de lhe restaurar um sentido de ligação. A uma escala global, sociedades em arritmia precisam de reencontrar um passo lento. A vantagem da lentidão sobre a velocidade é que aquela permite-se todos os tempos juntos e esta nenhum. Na verdade, a velocidade, não perdendo tempo, perde o tempo. Toda a sua justificação depende da angústia da perda de tempo e da procrastinação.

A evasão do mundo tem sido também uma evasão para dentro da ignorância. A democracia acarreta um pouco do cepticismo prudente do conservador que não sobrestima o conhecimento sobre as vontades. Um voto é um voto, uma vida é uma vida, uma consciência é uma consciência. A igualdade é superior a qualquer superioridade reclamada. E só assim se admite a democracia.

Mas se não queremos uma república de sábios, também devemos não querer uma república da ignorância, pior, de uma ignorância selectiva e deliberada, que democratiza um “prefiro não saber”. Esta república da ignorância é só um cinismo do conhecimento sobre a seriedade da existência. O tempo em que se dizia “saber é poder” já passou há muito.

Depois, tivemos o tempo em que saber era impotência. Modernidade e crítica da modernidade passaram filosoficamente por estas duas fases. Mas, a que assistimos hoje?

Diante da impotência,  demos uma volta sinistra ao texto e agora o lema passou a ser “ignorar é poder”. Deveríamos “preferir não fazer”, como recomendava o Bartleby de Melville, em vez de “preferirmos não saber” e, claro, assim tudo fazer. Porque estimamos no nosso poder uma legitimidade que não se refreia, não se relativiza, não se questiona. E na base disto, uma fé, a das utopias sem realismo, pior, um fantasma de fé, uma fé mal assumida, despida por isso de aparato crítico, discussão, uma fé selvagem, de narcisismo de espécie.

Entrámos em 2019 e o populismo ocupou o imaginário global. Falamos dele no plural porque o associamos a nacionalismos, fronteiras e discriminações de geografia local, mas o populismo só se serviu destes como incubadoras. Portanto, apesar de não parecer, a natureza deste populismo que nos ocupa o imaginário é tão global como o problema das alterações climáticas, ou da exaustão dos recursos.

A pergunta a fazer é por que razão o populismo é global, por que não se divide e se disputa em populismos daqui e dali, o que lhe confere, apesar de todas as minudentes diferenças, uma base tão homogénea? Os nacionalismos e outros particularismos são o seu pretexto, mas a sua lógica arranca de outras condições, que são globais e só podem ser enfrentadas se compreendidas dessa maneira. Uma evasão do mundo, também no poder de o ignorar, a que a oposição entre realismo e utopia e a conformação à escolha de uma delas só presta serviço.

Num livro que fez sucesso no ano passado, o historiador Rutger Bregman reivindicou a necessidade de utopias, mas para realistas, que recuperassem a ideia de um sentido colectivo que continue a história. E desde o princípio dos anos 90, do ponto de vista de ciências sociais, tem tido curso, sobretudo na academia norte-americana, um projecto de “utopias reais”, baseadas na ideia de as projectar menos a partir da imaginação literária e mais a partir de conhecimento científico. Mas, antes de tudo isso, um realismo com utopia nas veias tem de ser ganho como cidadania do mundo contra esta evasão do mundo que andamos a fazer das nossas vidas.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.