Numa eleição disputada em plena pandemia, as filas que se formaram no exterior dos edifícios onde decorreu a votação apontam para que o primeiro vencedor do ato eleitoral tenha sido o povo português. De facto, apesar do clima de consternação e preocupação generalizada, e da certeza da reeleição de Marcelo, a abstenção esteve longe dos valores catastróficos que muitos anteviam e que o registo automático dos emigrantes anunciava.
Uma abstenção que não tirou brilho à retumbante vitória de Marcelo. Um triunfo por números claros face ao aumento tanto de votos como da percentagem relativamente a 2016. Uma prova de que a grande maioria dos portugueses não o responsabiliza diretamente pelos sucessivos desnortes governamentais.
Vitória pode também ser reclamada por André Ventura, malgrado não ter conseguido ficar em segundo lugar. De facto, o cerca de meio milhão de votos que logrou colocam-no muito acima dos valores somados de João Ferreira e de Marisa Matias. Caso para dizer que o voto populista identitário e antissistema da direita suplantou – e muito – o voto populista socioeconómico da esquerda. Dito de outra forma: o Chega seguiu as pegadas do Vox e a Península Ibérica deixou de ser uma das reduzidas partes da Europa onde o populismo era maioritariamente de esquerda.
Vitória que Ana Gomes não pode reivindicar, apesar de ter terminado um pouco à frente de Ventura. Na realidade, a votação ficou muito curta. Cerca de metade dos votos obtidos por Sampaio da Nóvoa em 2016 e pelo vate Alegre em 2006. A certeza de que uma voz incómoda para os interesses instalados não se irá calar não chega para apagar a mágoa do ostracismo a que o líder do seu partido a votou.
Por falar em António Costa, diga-se que acabou por ser um dos vencedores da noite. Uma vitória por inação, uma vez que o PS se demitiu da responsabilidade de apoiar um candidato, mas que irá funcionar como uma espécie de seguro de vida para o Governo socialista. Assim, é altamente previsível que o PCP e o Bloco não arrisquem provocar eleições antecipadas face ao pesadelo eleitoral de que demorarão a despertar.
Por outro lado, a reconfiguração da direita, com a subida exponencial da direita radical e a incipiente consolidação da direita liberal, como provou a votação em Tiago Gonçalves, deixam à direita social – leia-se PSD, uma vez que o CDS-PP parece esfumar-se – um reduzido campo de manobra para regressar ao Poder. Rui Rio, ainda que a contragosto, vai ser obrigado a contar com o Chega, com a agravante de tal atitude lhe custar os votos de parte do centro-direita.
Como o resultado de Tino de Rans nada tem a ver com a questão, a vitória de Costa talvez acabe por ser mais fácil do que o êxito de Marcelo. Aliás, isso ficou patente na noite e no discurso da reeleição.
A imagem que ficará para a História será a de Marcelo como um homem sozinho. Tanto à porta de casa, como a conduzir o próprio carro ou na Faculdade de Direito. A presença jornalística apenas documentou a solidão do Presidente dos Afetos.
O mais alto representante de uma Nação confinada, ele próprio integrante do grupo de risco de uma pandemia que não respeita o desgaste físico e psicológico, sabe que os afetos estão oficialmente proibidos, mas que o respeito pela dignidade na vida e na morte não é negociável.
Há vitórias necessárias. Daí os dois milhões e meio de abraços. Perdão, de votos.