A recente publicação de uma biografia de George Orwell ( Jacinta Maria Matos , Biografia intelectual de um guerrilheiro indesejado, Lisboa ,Edições 70, 2019) é o pretexto para a presente evocação . O escritor britânico, conhecido sobretudo por “1984 “e “A Quinta dos Animais “ procurou quase sempre juntar nas suas obras o propósito político e a intenção artística cujos valores prezava.
E essa dupla atitude é muito clara nessas suas duas mais famosas obras, hoje consideradas clássicos da literatura mundial. O que nem sempre foi claro – e tantas vezes deliberada ou intencionalmente confundido – foi o exacto sentido do propósito político . Por isso mesmo conservadores, liberais, socialistas ou marxistas interpretaram e continuam a interpretar de forma diferente e tantas vezes contraditória o sentido dessas ideias.
Para não falar nas adaptações ( e manipulações ) para outros formatos e meios , como o cinema, o teatro ou a banda desenhada, que em 70 anos se multiplicaram . Mas o propósito de Orwell, naquelas duas obras mas em particular na Quinta dos Animais foi um e um só: desmitificar a URSS como utopia de esquerda . O alvo foi pois o totalitarismo estalinista.
Mas se este ponto é relativamente consensual há outro corolário no pensamento de Orwell menos óbvio mas tão ou mais importante : o renascimento do socialismo ( democrático ou reformista mas sempre anti-capitalista ) exigia a destruição do mito soviético e a denúncia dos seus desvios .Uma batalha que hoje consideramos ganha mas que nas condições políticas do imediato pós II Guerra Mundial e no contexto da intelectualidade britânica ,acrítica em relação a Estaline, exigiu a Orwell coragem e determinação.
Para todos aqueles que, como eu, sempre se mantiveram fiéis ao partido da reforma e do movimento propugnado por Eduard Bernstein no séc.XIX, regressar a Orwell e ter da sua vida e obra um olhar luminoso e esclarecedor é um conforto de alma e um prazer intelectual.
E isso deve-se , voltando ao que de início escrevi, a essa rara e notabilíssima biografia da autoria da Profª . Jacinta Maria Matos . Rara porque não é nada frequente lermos biografias de personalidades mundiais escritas por portugueses /as . Notabilíssima porque é um trabalho a um tempo rigoroso e entusiástico , profundo mas acessível a um público não especializado e sobretudo literariamente muito cuidado ( o que não é um pormenor ).