A publicação pela revista The Atlantic, um reduto dos neoconservadores norte-americanos mais empedernidos, de um artigo da autoria do seu editor-chefe, Jeffrey Goldberg, sobre as discussões tidas num grupo de chat do Signal, um serviço de mensagens encriptadas de código aberto, em que participavam altos dignitários da Administração norte-americana, deixou alguma comunicação social europeia em êxtase.

O tema fez manchetes. E embora tenha nascido nos EUA, Goldberg viveu em Israel, onde serviu nas forças de defesa (IDF) durante a Primeira Intifada, tendo sido guarda da prisão de Ktzi’ot, onde se encontravam prisioneiros palestinos.

Segundo as explicações oficiais, Goldberg foi incluído por engano nesse grupo de chat, onde se discutiram os planos para atacar o Iémen. Cumpriu-se a lei de Murphy. É conhecida a hostilidade do The Atlantic a Trump. É uma publicação onde pontificam pessoas como Anne Applebaum, e em que campeia a russofobia.

Quando se apercebeu de que estava a mais no grupo, em vez de alertar e sair, num gesto eticamente muito questionável, Goldberg deixou-se ficar optando pelo voyeurismo, qual mirone a espreitar a vizinha desnuda no banho através de uma frecha da janela. Decidiu partilhar a sua experiência incluindo no texto vários screenshots selecionados, esclarecendo não ter revelado tudo o que viu.

O que aconteceu não pode ser considerado, de modo algum, um exemplo de boas práticas, infelizmente generalizado entre políticos. Talvez por falta de preparação na forma como lidar com matéria classificada, este erro tornou-se frequente. O caso mais chocante terá sido a violação da lei federal pela Secretária de Estado Hillary Clinton, quando utilizou um servidor de correio eletrónico privado para comunicações oficiais classificadas, em vez de utilizar as contas oficiais de correio eletrónico do Departamento de Estado, mantidas em servidores federais. Este caso é mais grave, por não se tratar de suspeitas de incompetência, mas sim de crime.

Com o “acidente” relatado tivemos a confirmação daquilo que se suspeitava. Como os sistemas oficiais seguros não funcionam, os altos funcionários recorrem a aplicações comerciais para lidarem com assuntos sensíveis. No século XXI, com a chegada dos millennials ao poder, o recurso a estas práticas tornar-se-á cada vez mais frequente, sendo necessário tomar urgentemente medidas para o evitar. Os serviços secretos de países hostis agradecem a inação.

O mais interessante do artigo, aquilo em que a comunicação social europeia deveria ter concentrado a atenção – a seleção dos screenshots, que não mostra informação secreta – foi varrido para debaixo do tapete. Não deixa de ser curioso verificar que o que os membros daquele grupo de chat disseram em privado coincide com o que têm vindo a dizer publicamente.

Particularmente confrangedor foi ver os europeus tomarem conhecimento, através deste incidente, daquilo que vai no pensamento da Administração norte-americana sobre desenvolvimentos desta natureza, com sérias implicações para eles e sem serem ouvidos nem achados. São os europeus quem mais beneficia com a liberdade de navegação no Mar Vermelho. Cerca de 40% do comércio para a Europa passa pelo Canal do Suez.

Não deixa de ser interessante notar que na decisão de atacar o Iémen, os americanos tiveram em consideração as possíveis consequências para a Europa, acabando por decidir algo com imenso impacto nos interesses europeus sem ouvirem/consultarem a sua opinião. É dramático o ponto a que chegaram as relações entre europeus e norte-americanos.

As relações internacionais encontram-se ao nível da escola secundária. Em vez de se discutirem contactos, negociações e reuniões de alto nível entre líderes, telefonemas entre a Administração norte-americana e Comissários europeus, discute-se o voyeurismo das relações internacionais. Aproveita-se um engano para dar gás à divergência entre as lideranças europeias e a atual Administração americana, fomentar a discórdia e cavar um fosso entre os dois lados do Atlântico.

Não me recordo de tanto frenesim e indignação nas lideranças e comunicação social europeias quando Victoria Nuland, manifestando um profundo desprezo pelos europeus, mandou a Europa para “aquela parte” (F*ck the EU), ou quando se tornou público que os telefones dos dirigentes europeus andavam a ser escutados por organizações norte-americanas.

Órfãos de um projeto no seu estertor, os líderes europeus estão a fazer tudo para cortar as relações com os EUA. As lideranças europeias esforçam-se ao máximo para extremá-las alimentando o ódio, procurando afirmarem-se como o bastião do anti trumpismo. O fosso que estão a cavar nas relações transatlânticas está a conduzir-nos para um beco sem saída. Entretanto, na Europa, a erudita Alta Representante Kaja Kallas prega aos quatro ventos que o Ocidente precisa de um novo líder. Mais rapidamente precisa a Europa de uma nova Alta Representante.

Uma última nota sobre os screenshots. Ficou evidente a aversão de JD Vance às guerras eternas (forever wars) e ao ataque ao Iémen, que não servem os interesses norte-americanos, extensiva à falta de entusiasmo e ceticismo relativamente a um conflito com o Irão. Um princípio que os europeus não aprenderam ainda, dispostos que estão a sacrificarem-se e a apoiarem cegamente a causa ucraniana. Apesar das suas descrenças, JD Vance mostrou ser um jogador de equipa e não vetou a decisão da maioria, o que revela ser esta segunda Administração Trump mais consistente do que a primeira. Há que contar seriamente com ela e não a menosprezar.