O acesso ao discurso foi sempre um privilégio dos mais fortes. Contudo, o surgimento de novos canais discursivos para a esfera pública deu a ideia de uma democratização do acesso ao discurso. Na verdade, esse processo de maior acesso ao discurso criou uma ilusão de quase livre acesso, pelo menos desde que existem redes sociais. Todavia, a história comprova que o discurso sempre resultou de um jogo de silêncios, gerido consoante os interesses dos poderes dominantes de determinada sociedade.
Certos grupos, dada a organização social existente, sempre estiveram consignados ao silêncio. Não porque não tivessem voz, não fossem parte daquela sociedade, ou não contribuíssem para o seu quotidiano, mas simplesmente porque a sua voz era silenciada por quem podia fazê-lo. Há cerca de ano e meio, Jorge Cañares-Esguerra referia a questão de os arquivos serem, por sua vez, os guardiões das memórias que apenas guardam fragmentos da materialidade relativa à narrativa que pretendem contar.
Em dias de excesso de discurso e canais variados para fazê-lo, vale a pena refletir sobre o que é afinal este poder da fala para a esfera pública. Até que ponto o falar para o público é uma ação livre ou é uma atividade ainda hoje constrangida. Essa permanece a grande questão.
Escolhi três livros para ilustrar esta relação entre vozes e silêncios. Começando na antiguidade clássica, passamos ao período do Iluminismo para culminar na atualidade. Viajando através de um romance, uma biografia e um ensaio, será possível ver como a gestão do discurso tem sido feita, em diferentes geografias e períodos de tempo.
Primeiro momento: a narrativa clássica entre vozes e silêncios
Uma das vozes mais silenciadas da história tem sido a das mulheres. Pertençam a que ordem ou classe social, etnia ou casta, às mulheres, salvo raras exceções, foi vedado o acesso ao discurso.
O primeiro livro sobre o qual escrevo, “O Silêncio das Mulheres”, da autoria de Pat Barker e publicado há um mês pela Quetzal, espelha a tentativa de contar a história da conquista de Troia pelos gregos, partindo do ponto de vista das mulheres. Aristocratas tornadas escravas, escravas tornadas concubinas, mas sempre dependentes da vontade alheia são as personagens com voz neste romance.
Os homens, apesar da sua importância história e mitológica, consagrada tradicionalmente, e que chegaram até nós, como, por exemplo, Aquiles, são remetidos para a narrativa através da voz feminina. É Briseida, oferecida a Aquiles, quem narra esta história, apesar de ela própria assumir que não é a dona do seu destino ou da sua história. O livro muito bem escrito e articulado suscita a vontade de ler sem parar.
Tem uma narrativa fluida, agarrada à escrita contemporânea, mas reportando sempre ao tempo e espaço da história. Quase em abertura, a descrição da sangrenta e impiedosa guerra que culmina com a tomada de Troia, faz-nos viajar até ao local. Na minha experiência literária, só me lembro de algo semelhante com “Salammbô”, de Gustave Flaubert, que nos leva até ao pós-guerras púnicas, em que os cartagineses enfrentaram a revolta dos mercenários.
Mas não foi só Flaubert que Pat Barker me trouxe à memória. Foi outro poema, transposto em canção. Refiro-me às “Mulheres de Atenas”, de Chico Buarque. Impossível ler sobre estas mulheres silenciadas de Barker, sem fazer o contraponto com as mulheres submissas de Buarque. Reportam as mulheres agredidas, de Troia e das cidades que caíram ao longo dessa guerra, mas também as mulheres em espera na Grécia. As agredidas e, supostamente, as agressoras. Barker e Buarque falam da universalidade do silêncio das mulheres. Se Pat Barker diz através da sua personagem que as mulheres não constroem a sua história, Buarque diz que as mulheres não têm direito a sonhos, só a presságios.
E os dois referem essa personagem mítica, Helena, que ousou escolher e fugir com Páris, dando origem a esta guerra que dura mais de uma década. É a sombra de Helena que acompanha os dois textos e faz contraponto a estas mulheres que, parecendo submissas, são fontes inesgotáveis de resiliência e amor à humanidade.
As mulheres de Troia ou de Atenas (ou de Lirnesso, como a protagonista do romance de Barker) são o exemplo de que a história não se cumpriu sem elas. Estas mulheres foram mais do que as mães dos filhos dos conquistadores e dos conquistados. São parte da narrativa, embora cedo tivessem sido apagadas dessa mesma história. Alvo de disputa ou ciúme, resistiram à perspetiva meramente doméstica ou sensual que obrigava a que os seus corpos fossem posse de outros.
Separados por uma transição de século e quatro décadas, este livro e esta música fazem justiça a estas “pequenas Helenas”, na expressão de Buarque, que não ficaram na história mas a construíram. Uma excelente opção de leitura em tempos de medo e de escrita da história, como aqueles em que vivemos hoje, com ou sem quarentena.
Segundo momento: pensamento racional e ficção
O período do Iluminismo foi marcante para o modo de pensar europeu até à contemporaneidade. Todos os movimentos intelectuais ocidentais de uma maneira ou de outra se reportam a esta grande mudança nas ideias que germinavam na Europa de então. O paradigma para a medição das coisas deixava de ser Deus e a liturgia e passava a ser a razão. A racionalidade ocupava os espaços inexplicados e deixados em aberto, por ideias que já não davam resposta aos desafios de então. Um dos nomes mais identificados com este movimento é o de Diderot, o organizador da “Enciclopédia”.
A biografia intelectual “Diderot e a arte de pensar livremente”, escrita por Andrew S. Curran e editada pela Temas e Debates – Círculo de Leitores, no outono passado, traz à luz partes pouco iluminadas da obra do autor. Começa por mencionar abertamente não só as amizades como a vida familiar do biografado, em que a presença da filha e da sua principal mecenas, Catarina, a Grande, são permanentes. Essa presença justifica-se por terem sido elas as fiéis depositárias das suas obras originais. Parte destas obras foram publicadas tardiamente e séculos após a morte do autor.
O Diderot ficcionista apagou-se face ao Diderot que empreendera o colossal trabalho de elaborar a primeira “Enciclopédia”. Curran recupera essa e outras partes apagadas ou rasuradas da vida de Diderot e contextualiza-as. Para coordenar um projeto como a “Enciclopédia”, Diderot tinha de ser um intelectual pleno, interessando-se pelas ciências exatas e naturais, mas também por literatura e artes plásticas. Porquê esquecer ou apagar essas partes? Para tornar mais relevante o grande empreendimento da sua vida? Ou para rasurar as intrigas do meio artístico parisiense e fazer esquecer uma censura que se estendia dos conteúdos para as questões estéticas?
A extensão das manobras por detrás do silêncio da totalidade da obra de Diderot é deixada em aberto pelo autor. Contudo, tudo o resto está lá. A descrição do que não foi publicado e a razão por que o autor provavelmente não o publicou. Também as perseguições, os silêncios forçados o emudecimento auto-imposto são parte deste livro que demonstra uma pesquisa extremamente cuidada. A forma como Curran escreve também torna o texto não só atrativo e esclarecedor como apetecível à leitura, sem se perder em pormenores desnecessários e evocando, sempre que necessário, os nomes e relações biográficas de autores como Voltaire e Rousseau que também se cruzaram com Diderot.
Nestes outros silêncios, foi apagada a ficção para iluminar essa grande obra, fruto do pensamento racional, a “Enciclopédia”. Apesar dessa narrativa resultante dos arquivos oficiais e do racionalismo, sobreviveram outros arquivos, desta feita pessoais, que permitiram ao autor reconstruir a vida e obra de Diderot, sem espaços em branco ou rasuras. Novamente, o jogo entre discurso e silêncio não foi tão óbvio quanto se pensa, o que nos leva a crer que os silêncios nem sempre são ausências, podem ser apenas apagamentos.
Terceiro momento: por detrás da cortina
Viajamos agora para fora da Europa e chegamos a Angola, um país historicamente marcado entre a criação discursiva como uma arma e o silêncio como estratégia do poder. Quando comecei a trabalhar sobre Angola foi exatamente sobre essa perspetiva de como a circulação discursiva na esfera pública dera voz aos filhos da terra, se bem que desigual face ao poder colonial, e permitira novas ideias para esse território ainda sem fronteiras fixas. Dobrava-se, então, o século, do XIX para o XX, e surgia o lastro de um protonacionalismo e movimento autonómico que viria a singrar décadas depois, no seguimento da luta de libertação.
O livro “O Domínio de Angola”, de Estelle Maussion, editado pela Oficina do Livro há cerca de um mês, é elucidativo sobre como se gerem os silêncios e como a família Dos Santos sabia desse ofício. Baseado em factos ocorridos neste século, o livro desta jornalista francesa permite-nos acompanhar o período de magnificência da família Dos Santos, bem como o seu desabar. Focando, sobretudo, José Eduardo dos Santos e Isabel dos Santos, o livro remete-nos para duas personalidades que foram cúmplices na coordenação do poder político com o poder económico e financeiro. Maussion mostra como se moveram internacionalmente e ganharam o apoio de que necessitavam para prosseguir com a sua política interna.
O livro publicado em França, em 2019, foi rapidamente traduzido para o português. A par da qualidade da sua narrativa, ancorada em factos reais, baseada na recolha da autora e numa escrita fluida e encadeada que o torna atrativo e fácil de ler, esta obra apresenta-se no momento certo. Explorando os silêncios voluntários da família Dos Santos, que se protegia dos olhares indiscretos dos jornalistas, Maussion também revela uma série de silêncios e de vozes silenciadas ou das quais se fez pouco caso.
Durante o período de ascensão e grandiosidade da família Dos Santos, poucos foram os que levantaram a voz. Uns foram silenciados pelo medo, outros simplesmente mantidos como marginais da grande narrativa do período pós-colonial e pós-guerra civil de Angola. Outra vez, o poder de usar o discurso e o silêncio. A oportunidade da publicação deste livro mostra também como uma jornalista radicada e credenciada para trabalhar oficialmente em Angola mediou o seu discurso e esperou pelo momento certo para a edição deste importante testemunho sobre o país.
Quarto momento: à laia de conclusão
Quem diz que o discurso é para os poderosos, engana-se. Por vezes, o silêncio também é de quem manda. Na verdade, o jogo entre silêncios e discursos provém dessa autoridade emanada da organização social, seja esta qual for. Claro que quem tem poder pode gerar silêncios e discursos. É nossa função corrigi-los e nunca desistir de o fazer, tendo em mente que os arquivos são e serão sempre incompletos e redutores, revelando a narrativa de quem (indivíduo, grupo ou instituição) os organizou.
Se repararem, começámos pelo apagamento do papel feminino na história, recuperado através da literatura e da música, passando pela vida de um importante autor iluminista do século XVIII, trazido ao presente por uma muito completa biografia, terminando num pai e filha que se tornaram os putativos dominadores de Angola, expostos num livro-ensaio repleto de informação. O que têm em comum? A alternância entre silêncios e discursos que se opera em qualquer momento histórico. É o nosso papel lembrar o que deve ser lembrado e essa talvez seja a única missão deste meu pequeno texto: relembrar que, quando deixamos algo para trás, é sempre possível recuperá-lo e trazê-lo de volta à narrativa dos factos.