As coisas pareciam estar a pacificar-se na União Europeia quando o BVerfG, o Tribunal Constitucional alemão, decidiu fazer o papel do amigo embriagado, que aparece na festa sem ser convidado, e a estraga definitivamente.

Vamos aos factos. Em 2015, para fazer face à crise financeira que ameaçava a zona euro, o BCE lançou o ambicioso Programa de Compra de Dívida Pública dos Estados-membros que Mário Draghi celebrizou ao declarar que faria “whatever it takes” para salvar a moeda única.

Chamado a apreciar um caso em que uma das partes alegava a ilegalidade do Plano Draghi, o BVerfG teve dúvidas sobre se o BCE não teria extravasado as competências conferidas pelo Tratado no âmbito da política monetária e entrado na esfera da política económica dos Estados-membros, tendo colocado a questão ao Tribunal de Justiça da União Europeia.

O TJUE entendeu que não, e, quando o assunto parecia ter tudo para se resolver, o BVerfG não aceitou a resposta, declarando o Programa Draghi e o acórdão do TJUE ultra vires, isto é, fora da competência concedida pelos Tratados.

A reações não se fizeram esperar e não é caso para menos. O dano que o acórdão do TC alemão poderá infligir na União Europeia é tremendo.

Primeiro, no atual contexto Covid-19, tem claramente o propósito de condicionar o papel do BCE na assistência financeira aos Estados-membros. Tendo o BCE anunciado um pacote de 750 mil milhões para a compra de dívida pública, os juízes alemães deixam muito claro o que pensam da medida. Considerando a recente e acentuada tensão entre os Estados-membros, o timing do acórdão dificilmente poderia ser mais inoportuno.

Em segundo lugar, o BVerfG vem desafiar a supremacia do direito da União sobre o direito nacional e substituir-se ao TJUE como seu último intérprete. Por esta razão, o acórdão tem sido visto como um “tiro no coração” do princípio da supremacia do direito da União e como um “balão de oxigénio” para as batalhas jurídicas e políticas que países eurocéticos, como a Polónia e a Hungria, têm vindo a travar sobre este tema.

Em terceiro lugar, sendo claro que não tem jurisdição sobre o BCE, mas declarando o Programa ilegal na Alemanha, a decisão do BVerfG é dirigida às entidades alemãs que a ela estão sujeitas – como o Banco central alemão – que fica potencialmente impedido de comprar dívida pública ao abrigo do referido programa. É uma posição insustentável. No curto prazo, a participação das instituições alemãs na execução do Programa do BCE para compra de dívida pública no contexto pandémico fica ameaçada. No médio prazo, toda a coerência do edifício jurídico da União está posta em causa.

O mal está feito e nenhuma das saídas que se perspetivam é satisfatória.

Por um lado, o BCE poderia fundamentar melhor a medida e torná-la legítima à luz do dos critérios fixados pelo TC alemão (um caminho permitido no acórdão), resolvendo assim o impasse. Se o fizer, porém, estará a reconhecer a legitimidade de um tribunal nacional para rever as suas decisões o que criaria um precedente ingerível e ameaçaria a unidade jurídica da União.

Por outro lado, a abertura de um procedimento de infração pela Comissão Europeia contra a Alemanha poderá ser um trilho estreito e perigoso. Além de poder ser mais uma acha para a fogueira, existem muito poucos precedentes de procedimentos de infração relativos a decisões judiciais nacionais, e é muito complexo, jurídica e politicamente, corrigir uma decisão de um tribunal, ainda para mais quando se trata do mais importante do país.

A Comissão tem assim uma decisão difícil para tomar. Está muito em jogo, e vai muito além da resposta à pandemia. É o futuro do Euro e da própria União que se discutem e, uma vez mais, só uma abordagem whatever it takes poderá produzir resultados.