Nos últimos anos, o tema relativo à proteção dos denunciantes tem vindo a gerar uma atenção e um interesse crescentes a nível global, em resultado de situações em que o papel destes agentes se revelou decisivo para a deteção e repressão de atividades ilícitas, lesivas do interesse público, frequentemente a uma escala que exorbita fronteiras nacionais. A denúncia, nesse contexto, tem vindo a assumir-se como um importante e eficaz instrumento de política criminal, em especial, no combate à criminalidade que não atinge diretamente uma vítima ou em que a vítima não está concretamente identificada. As pessoas que trabalham numa organização pública ou privada, ou que com elas contactam profissionalmente, estão, na maior parte das vezes, numa posição privilegiada para tomar conhecimento de ameaças ou de lesões efetivas que surgem no âmbito dessas organizações, mas estão igualmente expostas a retaliações, com incidência na sua situação laboral, o que constitui importante fator de inibição e de injustiça.
Com efeito, perante a ausência de um quadro legal consistente no ordenamento jurídico português sobre esta matéria, a denúncia necessariamente implica uma ponderação crítica entre o risco pessoal a assumir pelo agente e a defesa do interesse público, conflito que se tem vindo a resolver na maior parte das vezes a favor de uma atitude de resignação e conformismo. Neste enquadramento, a denominada Diretiva Whistleblowing surgiu com a finalidade de assegurar um nível eficaz e controlado de proteção dos denunciantes de violações do direito da união europeia consideradas como gravemente lesivas do interesse público e assenta em duas premissas essenciais: a obrigatoriedade de criação de canais internos de denúncia nas empresas e nas pessoas coletivas de direito público e a proibição de qualquer forma de retaliação acompanhada da consagração de medidas de proteção e de apoio aos denunciantes.
Uma vez que o nosso ordenamento jurídico não dispunha de um regime transversal de proteção dos denunciantes, não obstante a existência fragmentária de normas de proteção em específicos domínios sectoriais, foi aprovada a Lei n.º 93/2021, de 20 de dezembro, enquanto resultado da transposição para o direito interno Português da referida Diretiva comunitária, cujo início de produção de efeitos se iniciará no dia 20 de junho do ano próximo.
Efetivamente, sob pena de se sujeitarem ao escrutínio público e a um severo regime contraordenacional, as empresas, o Estado e as pessoas coletivas de direito público, que empreguem 50 ou mais trabalhadores, terão durante o próximo semestre de preparar as respetivas estruturas, no sentido de se dotarem de canais de denúncia internos, por forma a permitir a apresentação e o seguimento seguro, tempestivo e eficaz de denúncias, que sejam apresentadas por trabalhadores do setor privado ou do setor público, por prestadores de serviços, fornecedores e até por pessoas pertencentes a órgãos de governança de pessoas coletivas ou que integrem os respetivos órgãos de fiscalização ou de supervisão. O âmbito material de aplicação da nova Lei compreende, entre outros, domínios tão variados como os da contratação pública, prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo, proteção do ambiente ou da saúde pública.
O denunciante a que nova Lei aparentemente se refere é aquele que denuncia infrações de que toma conhecimento no exercício das suas funções, em cuja prática não participou. De fora do recorte legal parece ficar o delator, enquanto imagem do oportunismo daquele que não hesita, em troca de graciosidade no tratamento, em fazer recair noutra pessoa, a parte correspondente de responsabilidade que lhe cabe, pela participação ou envolvimento que também ele teve na prática do crime.
Para efeitos de proteção do denunciante, importante é que se demonstre que o mesmo tinha motivos razoáveis para considerar que, atendendo às circunstâncias e às informações de que dispunha no momento da denúncia, os factos por si denunciados eram verdadeiros, ainda que tenha comunicado, inadvertidamente, informações inexatas sobre violações, acreditando que se encontravam abrangidas pelo âmbito da proteção do novo diploma legal português sobre esta matéria. Pelo contrário, não beneficiará de qualquer proteção o denunciante que deliberadamente e com conhecimento de causa, comunique informações falsas ou deturpadas, o que constitui salvaguarda suficiente contra denuncias de má-fé, levianas ou abusivas. Os motivos que levam o denunciante a fazer a denúncia são totalmente irrelevantes, desde que os factos denunciados sejam verdadeiros ou quando o denunciante tenha motivos razoáveis para acreditar que assim fossem.
A nova legislação expressamente consagra medidas de proteção dos denunciantes, porquanto, sob pena de responsabilidade civil e da obrigação de indemnização pelos danos causados, estabelece a obrigação de manutenção da confidencialidade da identidade dos denunciantes e a proibição de prática de atos de retaliação contra aqueles, tais como o despedimento, não renovação de um contrato de trabalho a termo, avaliação negativa de desempenho ou referência negativa para fins de emprego, suspensão do contrato de trabalho, alterações das condições trabalho (tais como funções, horário, local de trabalho ou retribuição, não promoção do trabalhador ou o incumprimento de deveres laborais), a resolução de um contrato de fornecimento ou de prestação de serviços, entre outros, presumindo-se, até prova em contrário, que se tais situações ocorrerem nos dois anos seguintes à denúncia ou divulgação pública, foram motivadas pela denúncia interna, externa ou divulgação pública.
O novo quadro legal neste âmbito prevê um regime contraordenacional aplicável às empresas, ao Estado e às demais pessoas coletivas de direito público, que configura como contraordenações muito graves, as situações em que as referidas entidades obrigadas atuem de forma a impedir a apresentação ou o seguimento de denúncia, promovam a prática de atos de retaliação contra os denunciantes ou pessoas que aos mesmos se encontrem ligadas, não cumpram o dever de confidencialidade, e comuniquem ou divulguem publicamente informações falsas, incorrendo, nestes casos, numa coima que se situa entre o valor mínimo de 10 mil euros e o valor máximo de 250 mil euros.
Por seu turno, constituirão contraordenações graves, as situações em que, por exemplo e ainda que a titulo de negligência, as referidas entidades obrigadas não disponham de canais de denúncia internos que ofereçam garantias de exaustividade, integridade, conservação de denúncias ou confidencialidade da identidade ou anonimato dos denunciantes ou de terceiros mencionados na denúncia, não cumpram os prazos legais de seguimento da denúncia, não procedam ao registo ou à conservação da denúncia recebida pelo período mínimo de cinco anos ou não comuniquem ao denunciante o resultado da análise da denúncia nos termos legalmente previstos, incorrendo nesses casos numa coima que se situa entre o valor mínimo de mil euros e o valor máximo de 125 mil euros.
A decisão de denúncia é um ato de coragem e de cidadania. Um ato que muitas vezes comporta elevados custos pessoais. Enquanto parte da estratégia nacional de combate à corrupção, cabe ao Estado mitigar os riscos e consequências para aqueles que, tendo motivos razoáveis para crer que as informações que possuem e pretendem denunciar são verdadeiras, decidem comunicar a sua existência. Este regime jurídico geral de proteção aos denunciantes não será seguramente perfeito, mas afigura-se inegável que a sua transversalidade e abrangência multissetorial e pessoal será suscetível de materializar a promoção da transparência, justiça e igualdade, sem deixar naturalmente de salvaguardar o respeito pelos direitos e garantias fundamentais das pessoas visadas pelas denúncias. Em causa está a probidade, a ética e a integridade das instituições, enquanto condições de garantia e de reforço da expectativa comunitária do cumprimento generalizado da lei.
A importância de uma denúncia é vital quando se está perante um tipo de criminalidade intrincada, hermética e colonizada pelos seus autores, em relação à qual muitas vezes existe desinteresse provocado pela falta de perceção do dano social que provoca. Com efeito, o público em geral sente e vive as consequências de um crime de homicídio, de violação ou de roubo, porque a sua nocividade e intolerabilidade têm instantâneo efeito. Já a corrupção, o tráfico de influência ou o peculato, por exemplo, são crimes que se encontram destituídos da mesma representação comunitária, uma vez que que os padrões de censura e de exigência coletiva se encontram desnivelados em relação aos exemplos de crimes que anteriormente se referiram. Há, por isso, um longo caminho a percorrer, mas será consensual que este novo enquadramento legal, ainda que resultante de imposição comunitária e sempre suscetível de poder ser melhorado, é seguramente muito bem-vindo.