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Antonio di Pietro: “Porque não se cria uma lei internacional de boicote aos offshores?”

Antonio di Pietro liderou a investigação ‘Mãos Limpas’, marco na história jurídica e política italiana, e acabou por abraçar a carreira política. Numa entrevista conjunta, à margem das Conferências do Estoril, falou sobre a herança da mega-operação e da importância do combate à corrupção.
Cristina Bernardo
31 Maio 2017, 17h05

Para que serviu a operação “Mãos Limpas” em Itália? Porque é que não teve continuidade?

A “Mãos Limpas” foi simplesmente uma investigação judicial sem qualquer finalidade politica, embora eu tenha sido acusado de a fazer para fins políticos e que fui autorizado por serviços secretos estrangeiros. Na realidade, acabei por fazer apenas o meu dever. Permitiu descobrir aquilo que era possível descobrir. Mas todos os dias há guardas e ladrões, e portanto uma investigação nunca tem fim. Em Itália, após a investigação “Mãos Limpas” surgiram mais investigações para descobrir diariamente aquilo que acontece. E o mesmo está a acontecer noutros países. O facto de se descobrir um crime não é algo mau, o mau é os crimes acontecerem. O facto de noutros países se descobrir que a política muitas vezes tem corrupção é algo bom, é um bom exemplo que o meu país deu também aos outros.

Que tipo de herança e legado é que a “Mãos Limpas” deixou nas investigações que estão a ocorrer em Portugal e no Brasil, como a operação “Marquês” ou a “Lava-Jato”?

Não me vou atrever nunca a dar conselhos e sugestões a colegas de outros países sobre o que fazer e não fazer. Sei que no Brasil pensam que eu fiz algo semelhante, mas não é verdade. A verdade é muito simples: também no Brasil como em Itália, tal como noutros países, está a descobrir-se que o sistema de ocultação dos proveitos da corrupção aconteceu, como dizia Baltasar Gárzon na conferência, com recurso aos países offshore. Isto permite fazer outra denúncia pública, que já fiz tanto no Parlamento Europeu como no parlamento italiano. A hipocrisia das denúncias modernas e dos Estados ocidentais não veem aquilo que acontece nos chamados paraísos fiscais. Porque é que não se cria uma lei internacional de boicote comercial, industrial e financeiro com os países que não se adequam aos Estados de direito na luta contra a corrupção? Talvez fosse suficiente uma legislação internacional que travasse e impedisse os países offshore de terem relações comerciais com as democracias modernas.

Quer no Brasil quer em Portugal, os políticos que estão sob suspeita têm alegado que os processos são politicamente orientados. De que forma é que a Justiça poderá evitar essa suspeita sobre a própria Justiça? Por outro lado, a operação “Mãos Limpas” é por vezes apontada como um mau exemplo, em que a Justiça terá ido demasiado longe: decapitou o poder político e depois alguns juízes tornaram-se políticos. É uma visão justa?

Muitas vezes diz-se que a operação “Mãos Limpas” não conseguiu terminar o seu trabalho. Queria dizer que isso é falso. A questão é que as investigações judiciais nunca podem ter termo, porque só acabam quando os crimes acabarem. Nós descobrimos aquilo que foi possível descobrir. Mas, enquanto estamos aqui a falar, há crimes a serem cometidos e em 100 roubos só 10 é que são descobertos. É impossível descobrir tudo. A “Mãos Limpas” foi uma investigação importante que permitiu descobrir crimes. O facto de continuar a existir corrupção não é culpa da operação “Mãos Limpas”. Eu não consigo descobrir hoje um crime que vai ser cometido amanhã. Por isso é que digo que é errado dizer que a “Mãos Limpas” não alcançou o seu objetivo. A “Mãos Limpas” descobriu aqueles crimes em concreto e levou-os perante a Justiça. Mas todos os dias tem que haver “Mãos Limpas” porque todos os dias há polícias a lutar contra ladrões. Para evitar que haja corrupção é preciso que os crimes não sejam cometidos, mas esse não é o papel do magistrado. O magistrado, por definição, só chega quando o crime já foi cometido. É preciso haver prevenção e educação. É preciso que o cidadão assuma a sua responsabilidade quando vai votar e veja em quem está a votar. Mas a maior responsabilidade reside em vocês, jornalistas, que fazem a informação. Têm o dever de contar a verdade aos cidadãos. O juiz da democracia é a informação. O juiz das leis é o magistrado.

Os juízes de processos mediáticos – no Brasil, em Portugal, na Itália – tornaram-se como que “estrelas de música rock”, também eles figuras muito mediáticas. Quais são as vantagens e as desvantagens desse fenómeno para o exercício da justiça?
Creio que, num país democrático, os cidadãos têm que ser colocados em condição de saberem quem os governa e quem os representa. Isso deverá ser uma conquista. Portanto, ao nível mediático, o facto de ser contado o que acontece nos tribunais, quando diz respeito aos poderosos – da política, das empresas e os funcionários -, é um facto positivo e não negativo. Pode-se fazer um julgamento do julgamento. Ou seja, eu oiço dizer, a partir de vários lados, que um processo mediático não é bom para a justiça. Não é verdade. Isto é bom para a justiça e para a democracia. Nós precisamos de um sistema de informação independente e transparente. Eu testemunhei, não só no meu país mas também noutros países, que os meios de comunicação social, em vez de fazerem o seu dever, informam ou desinformam por ordens de alguém. E portanto, vocês, jornalistas, têm que fazer um exame de consciência e têm que perguntar a vocês próprios, todos os dias, se fazem o vosso dever.
Há a “delação premiada” no Brasil e os “arrependidos” da máfia na Itália. Em Portugal, só no tráfico de droga é que existe praticamente a figura do “arrependido”. Qual é a experiência da operação “Mãos Limpas” relativamente à importância ou não desse mecanismo que é concedido aos arguidos?
Na operação “Mãos Limpas” não se recorreu à premiação, ou seja, dar um benefício a alguém que cometeu um crime, em que esse benefício é dado porque colabora com a justiça. O recurso aos “arrependidos”, ou delação premiada, utilizámos muito no combate ao terrorismo interno que ocorreu intensamente na década de 1980 e também na luta contra a criminalidade organizada que, em alguns setores italianos, estava e continua a estar muito presente. A operação “Mãos Limpas” era uma investigação que incidia sobre um sistema político corrupto, envolvendo funcionários públicos e um sistema empresarial corruptor. É uma investigação completamente diferente do combate à criminalidade organizada, máfia, terrorismo. Por isso não recorremos a uma premiação para quem colaborava, mas simplesmente a investigação permitiu apurar aquilo que aconteceu nesses anos, no nosso país. Ou seja, um sistema de tal forma corrupto que quem queria formar uma empresa tinha obrigatoriamente que pagar a políticos ou a funcionários públicos. Um sistema em que, ou uma pessoa se adaptava, ou de outra forma não conseguia criar uma empresa. Portanto, nós na operação “Mãos Limpas” conseguimos distinguir os casos em que havia co-responsabilidade e outros casos em que uma das partes era vítima da outra, o corruptor, aquele que dava o dinheiro. Assim entendemos o “sistema ambiental”, através do qual quem não se adaptava tinha que sofrer. Trata-se de uma vítima, não necessita de um prémio.

 

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