Nove dias, 11 mulheres, 430 quilómetros. Vinhais a Fátima, a mais longa peregrinação do país. As bolhas nos pés, o joelho inflamado, as discussões e os choques de personalidade não são ficção. A preparação começou em 2015, quando percorreram os mesmos caminhos a pé para depois darem vida a esta Peregrinação, que, diz o realizador, “não é para entender, é para se ver”. Não quis explicar “a necessidade de acreditar em algo transcendente, mas sim perceber até onde é que isso pode levar as pessoas”.
As actrizes passaram dois meses em Vinhais, mais precisamente na aldeia de Rio de Fornos. O objetivo? Integrarem-se na população, impregnarem-se do dia a dia, do linguajar do quotidiano, dos gestos, da maneira de pensar e ver o mundo. Rita Blanco, Anabela Moreira, Márcia Breia, Ana Bustorff, Sara Norte, Cleia Almeida, Teresa Madruga, íris Macedo e Vera Barreto, Teresa Tavares e Alexandra Rosa inspiraram-se em mulheres de carne e osso e instalaram-se na aldeia. Cada uma fez o seu “estágio”: da lavoura ao centro de saúde e à escola até à fábrica de enchidos, ao posto de turismo ou balcão de um café.
Mas antes de nos fazermos à estrada, pelos caminhos da fé, quisemos saber como tudo começou. Ou melhor, como surgiu o cinema na vida de João Canijo.
Nasceu e cresceu no Porto, e estudou História na faculdade. Fez essa escolha por convicção ou foi aleatória?
A História foi circunstancial e foi principalmente porque, quando entrei para a faculdade, não sabia que havia uma escola de cinema em Lisboa. À época, era uma escola super secreta! [risos] Desde os 12 anos que sabia que queria fazer cinema.
Tem presente o exato momento em que descobriu que o cinema ia ser a sua vida?
Antes do 25 de Abril, a contracultura de esquerda tinha problemas, porque se se era contra o regime era um problema, se se era neutro ou se não se era da esquerda leninista também se tinha problemas – como o Sr. [Manoel de] Oliveira os teve, que ficou não sei quantos anos sem filmar porque não era comunista nem era do regime. Portanto, era ‘mexilhão’. Quando o mar bateu na rocha, quem se lixou foi o Sr. Oliveira. Mas havia coisas boas. O contrapoder de esquerda criou, muito antes do tempo, ocupações de tempos livres para as crianças com atividades artísticas. Isto em Lisboa e no Porto. Se calhar mais interessantes e a funcionar melhor do que agora. Havia uma escola de artes para crianças que metia música, teatro, fantoches, artes plásticas e uma série de coisas, o que hoje se chama atividades extracurriculares. Os meus pais eram de esquerda e puseram-me nessa escola. Tinha 12 anos e, numa dessas actividades, encenei uma peça com fantoches que foi um sucesso. Naquele meio, claro! [risos] E eu descobri a minha vocação.
Falou no Manoel de Oliveira e como foi seu assistente de realização, e também do Wim Wenders, não resisto a perguntar-lhe se transpôs algum ensinamento de um ou de outro para este filme, ainda que inconscientemente?
Tenho total consciência. A grande marca é, indiscutivelmente, o Sr. Oliveira. Durante algum tempo também foi o Wenders até eu descobrir que aquilo era tudo uma fantochada. [sorriso] O Sr. Oliveira era um exemplo de integridade – de ser em primeiro lugar sério e intransigente consigo próprio… Para além de ter muita graça, mas em relação à maneira de fazer cinema não tenho nada a ver com o Sr. Oliveira.
Essa intransigência transparece em “Fátima”. Consigo próprio, com o elenco de 11 atrizes. Inicialmente pensou em juntar um grupo de mulheres que iriam juntas numa excursão, mas depois teve uma epifania e decidiu que iriam em peregrinação a Fátima: “a pé e que se iriam ‘matar umas às outras pelo caminho’”.
Foi mais ou menos isso. [sorriso] A ideia inicial, como alguém ‘traduziu’ muito bem, é que eu andava à procura de uma situação extrema onde pudesse levar um grupo de mulheres ao limite. Ou seja, relações entre mulheres num espaço em que estivessem fechadas e obrigadas a estar juntas 24 horas sobre 24 horas. Pensei numa excursão e imediatamente a seguir surgiu a peregrinação a pé a Fátima. A partir daí deixou de ser só isso e passou a ser isso e a necessidade de Deus. Ou seja, o filme passou a ser algo mais universal pela necessidade do transcendente. Ou como dizia o Artur, pela necessidade de metafísica. E agora vais ter de descobrir a que Artur me refiro… [risos]
Schopenhauer… mas mergulhando no transcendente, quando as atrizes fizeram a primeira peregrinação para se prepararem para aquela que iria ser filmada, reviram de alguma forma a sua relação ou opinião sobre a ‘transcendência’?
Reviram forçosamente, menos uma – a “Professora” [interpretada por Teresa Madruga]. É a única a quem foi permitido ser ateia, anticlerical e anticristã mesmo. E é a única, no filme, de quem se conhece o porquê. É a que não tem porquê! [risos] E é a única que explica porque vai na peregrinação. Ela não diz quem, mas foi a irmã que, às portas da morte, lhe pediu para cumprir a promessa dela.
Salvo a “Professora”, a peregrinação deixou marcas nas outras atrizes?
Sim, o impacto existiu, pelo menos durante algum tempo. [risos] Chegar a Fátima, chegar ao santuário propriamente dito, as velas e tudo o mais… aquilo mexe com as pessoas, comove mesmo quem não tem nada a ver com a religião católica. Só para dar um exemplo. A Rita [Blanco], que não é católica praticante nem nada que se pareça com isso, quando chegou da sua peregrinação vinha bastante cansada… ela fez a procissão das velas e no fim estava muito comovida porque parecia que, quando ia a andar, ia no ‘ar’. Não sentia o cansaço… [sorriso]
Nas peregrinações é normal as pessoas entoarem cânticos. Os que as atrizes cantam no filme foram escolhidos por alguma razão em particular?
Não, escolhemos os cânticos de Vinhais e, claro, as músicas do Padre Borga, que são universais… são muito cantadas na romaria. Mas a mais bonita de todas é a de Vinhais: a Nossa Senhora faz meias. E as atrizes ensaiaram no coro de Vinhais. Umas das vezes por semana, à noite, iam ensaiar com as mulheres do coro.
Habitualmente filma em interiores, num ambiente controlado. “Fátima” é filmado integralmente em exteriores. Foi um desafio acrescido?
Foi um desafio que coloquei a mim próprio. Em interiores, estava mais habituado a limitar o quadro, é mais fácil, e também a interrompê-lo. Foi um desafio consciente e propositado.
O resultado correspondeu às suas expectativas?
Formalmente, este é o primeiro filme em que fiz exatamente o que queria fazer. Posso explicar, mas é capaz de aborrecer os leitores… [risos]
Vamos acreditar que os leitores são curiosos e querem saber mais sobre o processo criativo.
Quis que neste filme o que está fora do quadro tivesse tanta ou mais importância que aquilo que está dentro. E no que está dentro queria que não houvesse [nos quadros] elementos preponderantes nem dirigir o olhar, e que o espetador tivesse de escolher aquilo que queria ver e construísse a sua própria história. Acho que consegui isso bastante bem! [sorriso] E outra coisa, também conceptual, quis tentar não dirigir o olhar na montagem ou na maneira de filmar. Ou seja, tentar que a filmagem fosse documental. E aí também consegui o que queria.
Na preparação do filme, isto é, durante a peregrinação ‘falsa’ por oposição à real, exigiu que as atrizes gravassem um diário no telemóvel para lho enviarem por mail todos os dias.
Sim, isso foi na preparação. As nove atrizes que fazem a peregrinação – as outras duas são acompanhantes – tinham de documentar a ‘romaria’. Com as novas tecnologias foi mais fácil. Elas iam duas a duas integradas em cinco grupos de peregrinos reais, em maio e outubro [de 2015], porque se juntasse mais que duas não iriam interagir com os restantes elementos, ou então seria uma interação muito mais circunscrita. Daí fiquei com as notas e ia transcrevendo os diários e, no fim de cada peregrinação real, reuníamos para resumir e sintetizar e acrescentar as coisas que podiam ter escapado.
O processo de escrita, como é habitual nos seus filmes, foi coletivo, em colaboração com as atrizes?
Sim, é sempre coletivo. No final manipulei tudo, mas sempre em função das notas que me enviaram.
Interessa-lhe o contágio e não a imitação. Ou seja, o importante é viver as situações para depois interpretar e não mimetizar.
A imitação não tem qualquer interesse do ponto de vista da interpretação. Mais. Os atores não se transformam. Isso é um mito idiota. Continuam a ser eles próprios. O que acontece é que se colocam na circunstância do personagem.
Mas os espetadores que não tenham pistas sobre a vivência de cada uma no “estágio” que fizeram em Vinhais ficarão, talvez, sem um enquadramento. Foi uma opção?
O enquadramento foi dado. Elas passaram dois meses e meio em Vinhais! A partir do momento em que está nelas, está no filme. Não é preciso mais nada.
Que reação espera do público de Vinhais? É lá que tem lugar a ante-estreia do filme, a 26 de Abril.
Acho que vão reagir bem. A ver vamos. [risos] Acho que vão gostar. As tiradas são de lá, os sotaques talvez não sejam todos perfeitos… mas fizeram o seu melhor. [As atrizes] precisavam de mais um mês, eventualmente. Mas é isso: cabe sempre ao espetador fazer a sua construção, porque qualquer explicação pode ser mal interpretada. Ou seja, uma explicação é interpretada, logo nunca é interpretada da mesma maneira. O que quer que seja. A interpretação é circunstancial e individual, portanto, qualquer explicação, por definição, é mal interpretada – do ponto de vista do explicador. Bem, não sou eu que digo isto. É um chavão de um senhor chamado Wittgenstein! [risos]
Não sendo da sua autoria fez dela sua, é isso?
Sim, tornei-a minha porque acho que, de facto, a representação que se faz da realidade é individual e intransmissível. Portanto, não faz sentido fazer um filme em que se tenta explicar tudo ao espetador porque ele vai sempre entender outra coisa. Mais vale apresentar apenas a ‘coisa’ e permitir ao espetador fazer a sua representação e depois a interpretação dessa representação.
É ateu e não fez juízos de valor sobre a questão, mas durante a sua peregrinação – mais curta, entre Coimbra e Fátima – encontrou respostas para algumas perguntas?
Não encontrei respostas, mas percebi que o filme fazia todo o sentido. Não percebia em nome de quê se fazia aquele sacrifício e se sofria daquela maneira. E aguentei até ao fim para provar a mim mesmo que o filme fazia sentido. No fundo, o que consegui foi fundamentar, justificar a questão do como e por que razão é que em nome de Deus, ou da aproximação de Deus, ou da necessidade de Deus, se sofre daquela maneira. Porque [a peregrinação] é chegar ao limite da resistência no fim de cada dia, sabendo que no dia seguinte vão fazer exatamente o mesmo. É um sofrimento e uma superação diários. E os transmontanos passam por isso nove dias. É a mais longa de todas as peregrinações!
A crueza das situações que as atrizes vivem lembra um cineasta filipino, o Brillante Mendoza. Há pontos que se tocam nos vossos filmes.
Sim, quando o descobri gostei imenso e gostei ainda mais quando percebi que usa um sistema [de trabalho] parecido com o meu. Segundo percebi, ele tem um grupo de ‘contratados’ nas ruas de Manila a quem paga para lhe trazerem histórias. Ora, como aqui [em Portugal] seria um pouco mais caro ter ‘informadores’, o informador sou eu próprio ou ponho as atrizes a fazer de informadoras. No caso de “Fátima”, a informadora foi a Anabela – o tempo todo! [risos]
Tal como aproveitar as pessoas que estão em Fátima no 12 de Maio. É lógico que tem de ser assim porque não há dinheiro para pagar a tantos figurantes.
Isso não é ‘lógica’, isso é obrigação. O 12 de Maio é quando lá estão duzentas e tal mil pessoas, ou mais de 300 mil nos bons anos. É impossível fazer de outra maneira. Essa foi a grande limitação e o grande constrangimento que eu tive neste filme… por uma questão de calendário. Precisava de mais um mês e meio em Vinhais, em termos de trabalho de organização de argumento. Tivemos uns contratempos, perdeu-se material… mas tudo se resolveu! Normalmente, o que eu faço é, depois de acabar o trabalho com as atrizes e dos ensaios gravados é tudo transcrito. Depois das cenas feitas, elas são improvisadas e gravadas outra vez, e daí é que saem os diálogos finais. Mas quando acaba a improvisação, geralmente há um mês e meio de intervalo até à rodagem. É o tempo em que eu organizo tudo, solidifico a planificação e escrevo as cenas literalmente. Neste caso nunca poderia escrever todas as cenas literalmente, mas estariam mais estruturadas porque neste filme iriam forçosamente ser improvisadas a seguir… Apesar dos ‘contratempos’ correu bem porque, felizmente, as atrizes estavam tão dentro dos personagens e da situação que sabiam exatamente o que tinham de fazer. Não precisava de dizer nada.
É uma feliz coincidência o filme ser estreado no centenário das aparições de Fátima?
Não era isso que estava previsto. Foi graças à crise que o filme atrasou dois anos. E acabou por ser uma feliz circunstância. Aliás, tenho tido bons feedbacks de católicos praticantes. Dizem que gostam do filme. Isto em Portugal, nas sessões especiais que têm sido feitas. E também há muitas pessoas que se comovem com o filme e que não são propriamente católicos praticantes. Eu gosto que os católicos gostem. Não tinha intenção nenhuma de chocar fosse quem fosse, mas também não tinha intenção nenhuma de não mostrar a realidade. Ou melhor, o que eu acho que é a realidade. Não há verdade, mas há um ponto de vista sobre a realidade.
Regresso a Rio de Fornos. Deixaram saudades?
Deixámos e até fizemos vários amigos. E já voltámos lá, há cerca de um mês, para passar um fim-de-semana. E a Anabela [Moreira] veio de lá mais gorda… outra vez! [risos]
E a filmar cada vez melhor, como já disse em várias ocasiões.
Sim. E no trabalho de investigação não há melhor do que a Anabela. Aliás, isto foi tudo um grande trabalho da Anabela. Ela estava a fazer um documentário sobre Trás-os-Montes, Portugal – Um dia de cada vez, e tinha uma boa desculpa para entrar na casa das pessoas nesse primeiro filme: ia perguntar-lhes o que pensavam acerca de Fátima. Era esse o mote para quebrar o gelo. O filme já estreou e agora vai sair a segunda parte: Portugal – Um dia de cada vez, Diário das Beiras e que é melhor, porque ela estava a filmar ainda melhor. A terceira parte vai ser o Minho, a quarta a Beira Interior e por aí fora… Aliás, a série para televisão vai estrear agora na RTP 2 e o título é mesmo “Guia de Portugal”, por partir dos guias da Gulbenkian com o mesmo nome. São 12 episódios e a realização é assinada pelos dois. Por mim e pela Anabela.
Já teve alguma ‘epifania’ que lhe desse pistas sobre o próximo filme?
Já tive uma ‘revelação’. [risos] Vai ser sobre três irmãs e passa-se num hotel decadente e vazio para as bandas de Castelo de Bode. E mais não digo.
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