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Quando os medicamentos não são custo-eficazes

Mesmo fornecidas a preço zero, muitas das novas tecnologias da saúde, embora clinicamente eficazes, não são custo-efetivas. Um problema polémico que um estudo feito em Portugal vem abordar.
Foto cedida
10 Janeiro 2018, 07h00

Os médicos e administradores hospitalares, responsáveis pela otimização dos custos das intervenções efetuadas nos doentes que tratam, enfrentam atualmente um novo e singular problema: tecnologias clinicamente eficazes, mas que revelam não ser custo-efetivas, mesmo se o seu custo fosse zero, o que não acontece. Este problema, que os especialistas designam de não custo-eficácia a preço zero (NCEZP, na sigla inglesa), dá-se com medicamentos desenvolvidos para populações com historial de tratamento de custo muito elevado que permitem prolongar a vida dos doentes, mas sem ganhos a nível de QALY (quality-adjusted life year – uma medida que procura analisar os ganhos em quantidade e em qualidade de vida).

Com o objetivo de identificar, no contexto português, tecnologias da saúde clinicamente eficazes, mas com resultados negativos em termos de custo-eficácia, e propor soluções que permitam alterar a análise e o processo de tomada de decisão de modo a resolver o problema, uma equipa de investigadores do Centro de Estudo Aplicados da School of Business and Economics da Católica Lisbon, e do CEMBE – Centro de Estudos de Medicina Baseados na Evidência, da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, realizaram um estudo, cujos resultados mostram diferentes situações em que o fenómeno ocorre e propõem soluções para o resolver.

Utilidade versus custo

“O standard atual na avaliação das novas tecnologias da saúde, e no caso do estudo agora apresentado, dos medicamentos, é a análise de custo-efetividade, que avalia a eficácia versus o risco e, simultaneamente, o impacto económico. Ora, o que esta análise produz é, entre outras coisas, o chamado rácio custo-eficácia incremental (ICER, na sigla inglesa), que nos diz se o benefício acrescido que um novo medicamento traz, quando comparado com as opções existentes, justifica o valor extra que custa”, explica António Vaz Carneiro, diretor do CEMBE, ao Jornal Económico. “Dito de outro modo, se o benefício que se obteria com a introdução de um novo medicamento justificaria, ou não, o preço a mais que ele vai custar, quando comparado com as opções atuais”, reforça.

Normalmente, esta análise é feita comparando os novos medicamentos com outros já existentes indicados para o tratamento de uma dada doença. Já quando se trata de doenças para as quais ainda não existem opções terapêuticas, ou estas são escassas, os valores aceitáveis são muito elevados. “Por exemplo, se tivermos um novo medicamento para a diabetes, doença para a qual já existem dezenas de fármacos no mercado, o valor do QALY será muito inferior ao do aceite para uma nova molécula que vem suprir uma necessidade clínica ainda não satisfeita, por exemplo para o tratamento de uma doença rara ou para a qual não existe tratamento disponível. Numa doença rara, um QALY pode facilmente atingir 500 mil euros”, refere. É evidente que “o valor que os contribuintes vão ter que suportar não é apenas o do novo fármaco, mas o de todos os fármacos que um determinado doente tomou para a tratar a sua doença: o custo global de um dado doente. Se a este valor global adicionarmos o custo de um novo medicamento, inovador, pode acontecer que este novo medicamento, mesmo que fosse a custo zero (uma impossibilidade prática no contexto actual do mercado), não seja custo-efetivo”, explica Vaz Carneiro.

Os autores do estudo apontam diversas situações em que o problema ocorre: por exemplo, quando a nova tecnologia aumenta o tempo de vida de um doente com historial de elevados custos anteriores. É o que acontece quando se aumenta a longevidade de doentes em hemodiálise. O aumento do tempo de vida não é, em si, um ganho em termos de QALY. O doente vive mais, mas com a mesma condição, continuando a fazer hemodiálise.

Outro exemplo é de novas tecnologias que prolongam o tempo em que o doente permanece num nível de cuidados altamente dispendioso, atrasando a sua passagem para níveis de cuidados menos dispendiosos. Acontece com a adição de um novo tratamento a um tratamento por quimioterapia pré-existente e em que os tratamentos anteriores foram muito dispendiosos.

Um terceiro exemplo é o prolongamento do tempo de vida propiciado por um novo medicamento que induza a ocorrência de um evento não relacionado. É a situação de um tratamento bem-sucedido de uma condição oncológica que torna possível uma intervenção muito dispendiosa.

“É claro que se pode argumentar que um doente que esteja a fazer diálise ganha com o prolongamento da sua vida. Mas não é essa a questão que o estudo agora apresentado levanta, mas, isso sim, uma questão de equidade”, aponta o professor da Faculdade de Medicina de Lisboa. “Se vamos gastar esse dinheiro com aquele doente, vamos deixar de ter dinheiro para outras intervenções, possivelmente mais custo-efetivas, como por exemplo o controlo da hipertensão”, diz.

Se a verba necessária para aumentar o tempo de vida do doente em diálise, for utilizada para prevenir 20 enfartes agudos do miocárdio e 10 AVC, os ganhos são objetivamente maiores.

Vaz Carneiro salienta que a questão apenas se coloca em sistemas suportados pelo erário público, como o português ou o britânico. Já nos Estados Unidos, em que vigoram as regras de mercado, a questão não se coloca. Quem tem um bom seguro de saúde tem acesso ao medicamento, quem não tem não acede à inovação. “É o mercado a funcionar, ainda que de modo que para nós é aberrante”, aponta Vaz Carneiro.

O custo para o Estado

Para o investigador, a questão do custo das novas terapias não pode deixar de ser debatida como prioridade. Isto porque, diz, “os Estados não têm como suportar a inovação que está a surgir todos os dias, sob pena dos sistemas de saúde colapsarem”. Um exemplo: “Há uma doença chamada hemoglobinúria paroxística noturna, uma doença que faz com que durante a noite, ocorra a destruição súbita de glóbulos vermelhos e consequente libertação de hemoglobina no sangue, o que com o tempo conduz a anemia grave. Até agora, a única solução que havia para tratar este problema era o recurso a transfusões, que podem ter que ser realizadas várias vezes por ano ou, em alguns doentes, uma vez por mês. O problema é que com a transfusão os níveis de ferro que se vai acumular no corpo do doente aumentam, podendo levar à morte. O que se faz atualmente é recorrer a medicamentos que reduzem a carga de ferro no sangue (quelante de ferro). Estes doentes têm em média uma esperança de vida de entre 10 e 15 anos após o diagnóstico, que é feito na adolescência. E acabam por morrer com acumulação de ferro no organismo, porque a certa altura já não respondem mais ao quelante”. Trata-se de uma doença muito rara, que se estima afete apenas escassas pessoas em Portugal. Ora, aponta Vaz Carneiro, “recentemente a investigação farmacêutica descobriu um novo medicamento eficaz no tratamento desta doença, que quase anula a necessidade de transfusões e aumenta a sobrevida entre 10 e 15 anos. Em vez de morrer aos 30, morre agora aos 45, o que é um ganho muito significativo. Só que há um problema, aponta o diretor do CEMBE: “O novo medicamento custa cerca de meio milhão de euros por ano/doente. Ora, somados os custos da medicação feita anteriormente mais os do novo medicamento, este doente vai custar 17,5 milhões de euros ao SNS durante toda a sua vida. É muito ou pouco?”, pergunta. E responde: “Como gestor, confesso que me custaria muito justificar este custo; como médico, não deixaria de recomendar o medicamento”.

A questão é polémica, reconhece o professor universitário, mas tem de ser enfrentada de uma forma transparente, envolvendo todos os sectores da sociedade. É esta, como um todo, que deve decidir, de preferência juntando à discussão um modelo científico sólido, de suporte à decisão e depois decidir.

Artigo publicado na edição digital do Jornal Económico. Assine aqui para ter acesso aos nossos conteúdos em primeira mão.

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