“Em Portugal, a administração pública vive desde há décadas num regime de congelamentos, entrecortados de ‘reformas’, que a desligou da realidade circundante”; “a Lei das Grandes Opções nunca passou de um simples repertório de intenções, sem planeamento de resultados e de custos, ou seja, deixando a ‘opção’ aos acidentes da política e da capacidade de financiamento do momento”; “o horizonte de médio prazo como base para a elaboração do OE limitava-se ao cumprimento formal de uma exigência do PEC, alterando todos os anos as metas de médio prazo, sem necessidade de fundamentação”; e “os programas traduziram-se, quando muito, em exercícios de semântica”, são algumas das críticas lançadas por Teodora Cardoso na publicação Publicação Ocasional com o título A Gestão Orçamental em Portugal: aspirações em busca de soluções, difundido pelo Conselho das Finanças Públicas (CFP).
O Conselho das Finanças Públicas divulgou hoje a Publicação Ocasional com o título da autoria de Teodora Cardoso. Neste texto, a Presidente do CFP descreve as características e evolução do processo orçamental em Portugal desde 1974, bem como as suas implicações para a capacidade de gestão e controlo das contas públicas e para o bem-estar social e o desenvolvimento da economia.
Para além de apresentar uma síntese dos problemas que têm caracterizado a gestão orçamental em Portugal, este texto indica também áreas prioritárias para a sua solução.
A economista defende a consagração do médio prazo como horizonte de definição da política orçamental; a adoção de um modelo de orçamento por programas, especificando as metas a alcançar e os respetivos custos totais, fontes de financiamento e entidade gestora; e a integração entre a política económica e orçamental, o que pressupõe a reformulação da Lei das Grandes Opções, que deve passar a constituir um verdadeiro programa de política económica e a ter em conta as condicionantes financeiras e, consequentemente, o custo de oportunidade das diferentes escolhas e a necessidade de as priorizar.
Aumento de despesa e do endividamento criaram os problemas económicos
A primeira conclusão a reter é a de que “os problemas que o país tem enfrentado não se deveram à obediência, na gestão da economia, a qualquer doutrina de fundamentalismo do mercado que impusesse limites rígidos às despesas públicas ou aos défices orçamentais. Pelo contrário, essa gestão assentou sempre na intervenção do Estado mediante o aumento das despesas e do endividamento públicos, tendo por objetivos o crescimento económico e a construção de um Estado social, em oposição ao regime de austeridade financeira herdado da ditadura”.
“Às responsabilidades assim atribuídas ao Estado não corresponderam, porém, as reformas institucionais indispensáveis para viabilizar sustentavelmente esses objetivos. Pelo contrário, manteve-se o fundamental das práticas de gestão orçamental que haviam perdido toda a eficácia fora do contexto do Estado mínimo submetido a uma rígida disciplina financeira que caraterizara a ditadura”, conclui Teodora Cardoso na sua análise. “Eliminar esse quadro, que há muito se tornara anacrónico, era inevitável, mas supunha instituir um novo enquadramento orçamental e definir e pôr em prática normas de gestão financeira pública compatíveis com o novo regime político. Na sua ausência a instabilidade voltou a caraterizar as finanças públicas e a acentuar a vulnerabilidade financeira do país à medida que o endividamento se acumulava”, explica no documento.
De forma contundente Teodora Cardoso diz que a “dependência com respeito às despesas públicas que daí derivou acabaria por refletir-se num desempenho económico medíocre”, apesar dos estímulos e da abundância de financiamento que caraterizaram as duas décadas que antecederam o eclodir da crise financeira.
“Esses mecanismos já mostraram a sua insuficiência como base do crescimento da economia e da resiliência necessária à sustentabilidade do Estado social. O reconhecimento desse facto e a expectativa de uma conjuntura mais favorável na Europa criam uma nova oportunidade para a adoção do corpo coerente de reformas institucionais e de mecanismos e práticas de gestão e governance de que o país precisa”, é o desafio lançado pela responsável pelo CFP.
Teodora Cardoso escreve que estas reformas devem dirigir-se ao desenvolvimento dos sectores transacionáveis, apoiando-se na racionalização das despesas públicas, da política fiscal e da capacidade reguladora do Estado. “Para isso são necessários recursos de que Portugal não dispunha em 1974. Desde então, porém, o país investiu em credibilidade internacional, em capital humano e em infraestruturas que disponibilizaram bases indispensáveis para viabilizar essa transformação. Resta construir sobre elas o sistema capaz de tornar as aspirações em realidades duradouras”, conclui.
No decurso da sua análise Teodora Cardoso afirma que um regime que atribui ao Estado a responsabilidade de garantir crescimento económico, pleno emprego e um sistema de segurança social abrangente e fiável “tem simultaneamente que definir um enquadramento da política económica e social e instrumentos de gestão da atividade governativa compatíveis com esses desígnios”. Essa responsabilidade exige que o Estado disponha de capacidade financeira para lhe permitir estabilizar a economia em períodos de crise e para, no médio e longo prazo, respeitar os compromissos que assume, em particular no que se refere a direitos sociais que consagra, acrescenta.
“Em 2015 foi aprovada uma nova lei de enquadramento orçamental que finalmente começa a integrar, não só princípios indispensáveis a um processo orçamental compatível com o Estado social que a Constituição consagra, mas também regras e instrumentos de gestão e controlo suscetíveis de promover o seu cumprimento”.
No seu Parecer sobre a proposta de lei, o CFP salientou três opções fundamentais definidas: “a integração entre a política económica e orçamental, supondo a reformulação da Lei das Grandes Opções, que deve passar a constituir um verdadeiro programa de política económica e a ter em conta as condicionantes financeiras e, consequentemente, o custo de oportunidade das diferentes escolhas e a necessidade de as priorizar; a consagração do médio prazo como horizonte de definição da política orçamental, atendendo ao facto de as decisões orçamentais terem impactos que extravasam claramente o horizonte anual; e a adoção de um modelo de orçamento por programas, especificando as metas a alcançar e os respetivos custos totais, fontes de financiamento e entidade gestora, bases indispensáveis à definição de prioridades, mas também à flexibilização e responsabilização da gestão”, defende Teodora Cardoso.
“Concretizar estas opções exige um conjunto de instrumentos que a lei também contempla e sobretudo requer um sistema de governance que esteve geralmente ausente, o que explica que todos os conceitos incorporados nestas opções tenham sempre merecido destaque nas intenções de política e na própria legislação, não tendo alcançado mais do que um cumprimento pontual”, aponta a economista.
Assim, diz Teodora Cardoso, “a Lei das Grandes Opções nunca passou de um simples repertório de intenções, sem planeamento de resultados e de custos, ou seja, deixando a “opção” aos acidentes da política e da capacidade de financiamento do momento”. A presidente do Conselho Superior, órgão máximo do Conselho das Finanças Públicas, diz ainda que “o horizonte de médio prazo como base para a elaboração do OE limitava-se ao cumprimento formal de uma exigência do PEC, alterando todos os anos as metas de médio prazo, sem necessidade de fundamentação”.
Finalmente, diz, “os programas traduziram-se, quando muito, em exercícios de semântica”.
“É, por isso, longo o caminho que falta percorrer, o que explica o período transitório de três anos que a própria lei prevê para a sua completa entrada em vigor”, explica a economista.
“Observámos entretanto em 2016 o reforço do uso de instrumentos de recurso (como o PERES ou os cortes no investimento) e carecendo de transparência (como as cativações excecionais) que, ao invés de caminharem na direção desejada, reiteraram as práticas que o novo enquadramento procura corrigir”, detectou a responsável pelo CFP.
“A habitual contradição de fundo continua a explicar esta evolução: os objetivos de crescimento económico e segurança social supõem um quadro de política económica que assente na confiança dos investidores e dos aforradores, não no cumprimento formal de regras mediante mecanismos de intervenção casuística”, diz Teodora Cardoso que acrescenta que esta forma de atuar pode parecer favorável durante algum tempo, “mas constitui um obstáculo ao reforço da capacidade regulatória e orçamental do Estado, o que, como a experiência mostra, acaba por frustrar os objetivos prosseguidos”.
“Daí a necessidade de enquadrar essa intervenção, o que, no domínio orçamental, implica ter como ponto de partida o planeamento e a gestão eficiente das despesas públicas. Esse planeamento deve ter em conta o espaço orçamental disponível, isto é, a capacidade de tributação e de financiamento do Estado, bem como o volume de despesas decorrentes de contratos firmados ou de direitos concedidos” diz a economista.
Aponta à necessidade de modernizar a administração pública. “A exigência de uma administração pública capacitada para a sua utilização vai além dessa formação, supondo também graus de autonomia e de responsabilização de gestão muito superiores aos requeridos pelo sistema salazarista. A complexidade de que se revestem hoje em dia as funções do Estado e o seu enquadramento internacional e tecnológico exigem conhecimentos especializados e capacidade de os aplicar, sem prescindir da transparência e responsabilização inerentes a um regime democrático”.
“O problema nesse domínio não é o de promover ou reprovar o papel de peritos independentes, mas sim o de garantir a sua transparência e contribuição para um verdadeiro debate de alternativas, o que supõe uma administração pública capaz de o acompanhar e avaliar segundo critérios de rigor técnico, que um processo eficiente de tomada de decisões não pode ignorar. Esta é uma área em que praticamente tudo está por fazer e que não se resolve mediante cortes e reposições salariais”, acrescenta a economista.
“Em resultado da inexistência de gestão de despesas ao longo de décadas, outro tema se impõe nesta área: a instituição de um sistema de revisão abrangente e permanente de despesas que substitua aos habituais argumentos de falta de meios a coerência e priorização dos objetivos e a sistemática avaliação do uso desses meios”, adianta a responsável pelo CFP. “A revisão de despesas destina-se, por definição, a identificar poupanças mediante ganhos de eficiência e priorização de despesas, o que a distingue de congelamentos e cortes horizontais. Trata-se de uma tarefa só viável na presença de um forte compromisso e liderança política e que supõe a supervisão operacional do Ministério das Finanças”, diz.
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