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Nuno Flora: “Temos um mecanismo perverso de fixação dos preços dos medicamentos”

O setor do medicamento é visto como um dos vectores da afirmação industrial nacional, tendo crescido nas exportações e com um potencial assinalável, dada a tendência de relocalização europeia. Ainda assim, falta algum apoio do Estado em fatores-chave, como na comparticipação aos utentes e na definição das estruturas críticas para o país, diz o presidente da ADIFA – Associação de Distribuidores Farmacêuticos.
23 Julho 2023, 08h00

Artigo originalmente publicado no caderno NOVO Economia de 15 de julho, com a edição impressa do Semanário NOVO.

Depois de uma pandemia que reforçou a noção de que o medicamento é um sector fundamental da vida nacional coletiva, o presidente da ADIFA – Associação de Distribuidores Farmacêuticos, Nuno Flora, estranha que ainda não tenham sido definidas as estruturas críticas para o país. Ao mesmo tempo, os preços regulados e muito baixos tornam o mercado nacional pouco atrativo, arriscando falta e até mesmo ruptura de stock de alguns fármacos.

Como é que as recentes crises afetaram a vossa operação?
Em média, agora fazem-se duas entregas diárias, uma de manhã e outra ao final da tarde. Por vezes há uma terceira, mas diminui-se isso, porque é uma operação custosa que teve de ser tornada mais eficiente. Há 15 ou 20 anos, talvez houvesse quatro ou cinco entregas diárias. A covid ajudou nesta redução, porque houve um período de menor circulação, e, mais recentemente, a crise energética, com a subida do preço dos combustíveis, e estabilizou-se nas duas entregas diárias. Temos de cumprir prazos de 12 horas regulados e, atualmente, conseguimos entregas em cerca de três horas, em média. Temos um serviço de excelência a nível nacional na distribuição de medicamentos, ao nível dos melhores da Europa e do mundo, em termos de tempos de entrega, número de rotas diárias, etc. Temos um problema grande, global, que é a escassez de medicamentos. O maior problema são os medicamentos de disponibilidade reduzida, a falta e a ruptura de stocks.

O que tem levado a estes problemas recentemente?
As rupturas, ou seja, indisponibilidade total, estão relacionadas sobretudo com problemas no fabrico. Foi-se perdendo capacidade produtiva, sobretudo a nível europeu, com o surgimento de geografias alternativas, como a Índia e a China. Estas produzem componentes, nem é tanto o produto final, e aqui estamos dependentes em mais de 80% do Extremo Oriente. Crises de saúde pública, eventos meteorológicos, crises energéticas, tudo isto coloca em causa a cadeia de abastecimento. Associada a isto está a questão do custo. Quase tudo é feito por transporte marítimo, cujo custo no último ano disparou, e o tempo também influencia. Hoje não temos a certeza de prazos. Até o alumínio das embalagens tem influência – é uma cadeia longa. Nas faltas, ou disponibilidade reduzida, o preço pesa, sobretudo em mercados regulados como o nosso. Muitas vezes não é atrativa a colocação de medicamentos em mercados como o nosso. Havendo escassez, com o nosso preço muito reduzido, as empresas colocam o produto noutros países mais competitivos. São fluxos de produtos escassos, em que a procura tem subido enormemente. Este é o maior problema, hoje.

Como se tem este problema manifestado em Portugal?
No nosso país há um mecanismo perverso. Definimos o preço do medicamento por comparação internacional com Espanha, França, Itália e Eslovénia. Anualmente, há uma revisão de preços: se o preço, cá, está excessivo, ele baixa; se estiver abaixo, não sobe. Isso foi o que aconteceu durante 20 anos, com uma erosão total do preço dos medicamentos no nosso país. E já vinha de antes da troika, apesar de se ter agravado durante esse período. Em 2015, a situação permaneceu. Este ano tivemos, pela primeira vez, um aumento nalguns preços, não todos, e por escalões. Isto é um primeiro passo de alguma disponibilidade, porque toda a gente percebia o problema. Ainda assim, os aumentos foram abaixo da inflação.

O aumento dos nossos custos foi ainda pior do que a inflação, não só na produção, mas também na distribuição, com o transporte e, sobretudo, o armazenamento, que trabalha 24 sobre 24 horas. As faturas da eletricidade, em alguns casos, mais do que duplicaram. É um processo 70% a 80% automatizado e com uma cadeia de frio. Isto traz custos enormes. Ao fim do ano, isto dá um rombo tremendo e, não havendo ajuste de preços, é todo “comido” por nós. A nossa expectativa é que se revejam os preços anualmente e que o nosso mecanismo perverso não preveja apenas a descida de preço, mas também a subida, quando esta se justifica.

Como responde às preocupações de quem lembra o impacto que subidas de preços nos medicamentos podem ter no orçamento de algumas populações mais vulneráveis?
Portugal tem das maiores percentagens de out-of-pocket, ou seja, a parte paga pelos pacientes para uma terapêutica, da OCDE. No caso do medicamento, o Estado tem um excelente mecanismo, a comparticipação, e pode aumentá-la. Infelizmente, tem estado estagnada. A despesa com medicamentos tem crescido porque o volume cresceu, mas a taxa de comparticipação média não se tem alterado. O Estado apoia tantas matérias, mas aqui, um bem essencial para a sociedade, não tem disponibilidade para investir mais. É uma situação um pouco esquizofrénica.

Na atual lógica de near-shoring e relocalização de indústrias essenciais na Europa, que papel pode Portugal ter na indústria biofarmacêutica?
Temos de entender a saúde como um fator de desenvolvimento do país, mudar a mentalidade, quer pelo lado do absentismo laboral, que diminui, quer pela atracção de competências para o nosso país, como o emprego qualificado, que leva a mais exportações. Temos uma balança comercial negativa, importamos medicamentos mais caros; mas olhando para o volume exportado, apenas os componentes automóveis ultrapassam as nossas exportações. Temos de resolver muito bem a questão dos custos de contexto. Seja ao nível do investimento, seja da produção, temos custos de contexto, nomeadamente referentes ao licenciamento, muito limitantes em várias áreas de atividade, incluindo a saúde. O Ministério da Economia e o da Saúde até criaram um grupo de trabalho, em que nós também estamos, exatamente para identificar vários pontos limitantes do investimento em saúde.

Qual o impacto do PRR neste objetivo?
Se servir para equipamento e edificação, não ajuda. Isso deveria estar contemplado no investimento do OE. Se não fizermos uma verdadeira transição, é atirar dinheiro para cima do problema. Depois, não haverá meios para manter os equipamentos nem os hospitais. Se for utilizado para uma verdadeira transição, particularmente digital, vamos ganhar muitos fatores de competitividade. Mas tem de ser nesta lógica. Por exemplo, temos dos melhores sistemas de prescrição do mundo – tal como isto foi feito, outras áreas precisam de um empurrão enorme.

Vários agentes do setor têm pedido uma reforma da reserva estratégica de medicamentos. Concorda com o pedido?
Não conhecemos a fundo como funciona, devo dizer de antemão. O que não pode acontecer é ser uma reserva estática. Não temos condições para isso, nem para compras por atacado de dois e três milhões. Uma coisa é ter uma reserva para militares, em caso de urgência nuclear; outra coisa são vacinas, produtos escassos, paracetamol, etc. Para funcionar, tem de ser pensada percebendo o que é o normal funcionamento do mercado e do consumo. O stock tem de ser renovado, senão, a validade está sempre a acabar. Não é construir um grande armazém. Tem de ser um stock dinâmico, integrado no circuito normal de ambulatório.

Que tópico lhe parece de relevância acrescida este ano no sector?
Estamos atrasados, no nosso país, na definição das estruturas críticas. Há um decreto, do início de Janeiro do ano passado, a arrancar o processo; agora, ainda não sabemos, por exemplo, se o Hospital de Santa Maria é uma infraestrutura crítica ou não. Já estamos tarde, e, na saúde, têm de ser identificadas, até para não se repetirem os problemas do passado, como na covid. Só quando acontecem os problemas é que alguém se lembra de fazer um despacho.

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