Do “segredo da morte de D. Pedro V”, a incidentes em jantares no Palácio da Ajuda, das visitas de Estado de Eduardo VII e Afonso XII, às aventuras de D. Luís, da instalação de D. Carlos em Belém, às férias na Gandarinha, somam-se os testemunhos de “Vital Fontes. Servidor de Reis e de Presidentes”, livro há muito esgotado, retomado agora numa edição partilhada pelo Museu da Presidência da República e a Imprensa Nacional Casa da Moeda.
O funcionário que chegou ao Palácio da Ajuda como moço de sala, no reinado de D. Luís, e saiu de Belém como mordomo de Óscar Carmona, que viajou em comitivas e se manteve sempre “às ordens” de suas excelências, recorda “o último dia da monarquia” e a chegada de Teófilo Braga, após a implantação da República – “um sábio”, que chegava de carro elétrico e preferia usar os transportes públicos.
Vital Fontes fala de Manuel de Arriaga, António José de Almeida, Afonso Costa e Machado dos Santos, de Sidónio Paes e Canto e Castro, do duque de Palmela e de João Franco, recorda as decisões para a emissão da nova moeda, as desavenças entre ministros e conflitos que desgastaram a I República.
“Quando Teixeira Gomes esteve em Belém [1923-1925], reinou grande ordem no palácio, muito elegância e bom serviço”, recorda o mordomo, a propósito do escritor e antigo embaixador em Londres, que morreria em 1941, na Argélia, como “o exilado de Bougie”.
Vital Fontes lembra, igualmente, pelos seus olhos, o golpe de 28 de maio de 1926, as decisões de Bernardino Machado, a chegada de Gomes da Costa à Presidência e, por fim, o Estado Novo, com Óscar Carmona, o presidente “muito friorento”, e Oliveira Salazar, sem deixar de lado incidentes como a visita de Norton de Matos, Mendes Cabeçadas e Tito de Morais, em 1931, quando comunicam a Belém “a constituição da Aliança Republicana-Socialista”.
Para o atual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, a reedição destas memórias é “um duplo dever institucional”: por um lado, o manter uma atividade editorial do Museu e, por outro, “o dever de assinalar a continuidade institucional da Chefia do Estado”.
Explica Rebelo de Sousa que esta “não se cinge ao relevo dado aos [sucessivos] titulares do cargo, antes abarca tudo quanto traduza tal continuidade”, tal como “acontece com o testemunho vertido na presente obra”.
O livro “Vital Fontes. Servidor de Reis e de Presidentes” foi editado pela primeira vez em 1945, quando o antigo mordomo tinha 84 anos, por iniciativa do jornalista espanhol Rogério García Pérez (1890-1979), que o conheceu numa viagem oficial do Presidente Óscar Carmona, em 1938, a Angola e S. Tomé e Príncipe.
O jornalista ficou fascinado com a experiência de vida do mordomo, e convenceu Vital Fontes a publicar as memórias de um quotidiano palaciano, de protocolo e receções, quer sob a bandeira azul e branca, da monarquia, quer sob a verde e rubra, da república.
Depois de servir como soldado, Vital Ferreira Fontes entrou na casa real, em 1886, por altura do casamento de D. Carlos com D. Amélia, e manteve-se em serviço até 1936, quando “uma das suas obrigações no Palácio de Belém [era] dar corda aos vários relógios, antigos e complicados”.
García Pérez escreve que, “instado”, Vital Fontes “foi ditando a medo, com receio de falar de mais, de ser indiscreto, desrespeitoso”, aquilo de que se lembrava.
E lembrava-se de muito, como da morte do rei D. Pedro V: “Pelo que ouvi, foi dum envenenamento que morreram o bondoso monarca e seus irmãos, os príncipes D. Fernando e D. João”, tendo-se salvado outro dos príncipes, D. Augusto, por intervenção do clínico José Caetano. “Não sei o que dirão os senhores historiadores, mas o que no paço então se dizia, era isto”, argumenta.
O mordomo não escondia a sua admiração pela rainha D. Maria II, que fazia renda no passeio público, em Lisboa, e “castigava os príncipes à vista de todos, para dar o exemplo”.
Dos banquetes, recordava “o problema tremendo” do serviço de frutos à mesa, na base de uma “luta desumana”, para alguns convidados: “Quantas vezes aconteceu ver-se uma pera projetada mesa fora ou uma laranja esguichar os vizinhos!”, contou. Por isso, passaram a ser servidos salada de frutos ou frutos com gelado.
A rainha Maria Pia, mulher de D. Luís, “muito bem-educada, punha à vontade os novatos e mostrava-lhes como se pode comer elegantemente um fruto sem usar faca”. Lavava-o ou “limpava-o bem no guardanapo, e comia delicadamente, cravando os dentes, sem abrir muito a boca”, recorda o mordomo.
Da atrapalhação em usar os talheres até à forma de colocar o guardanapo, ou usarem faca e garfo para comerem espargos, “em vez de os chuparem elegantemente”, muito fixou o olhar do servidor.
Sobre Carmona, Vital Fontes não se quis “alargar”: “Não devo falar muito, para que não se julgue lisonja ou servilismo o muito de agradável dele que poderia dizer”.
Quando editou estas memórias, em 1945, Vital Fontes somava 84 anos de vida e 14 de aposentação, desde 1931, embora se tivesse mantido “ao serviço” da Presidência até dezembro de 1936, e acompanhado Óscar Carmona, na viagem a São Tomé e Angola, em 1938.
O Museu da Presidência da República numa nota prévia, afirma que “todas as memórias espelham o olhar, as vivências e o tempo de quem as relata e as de Vital Fontes não são exceção”.
A edição inclui elementos de contextualização, situando o relato no tempo e no espaço, em cada capítulo.
Vital Fontes nasceu em 06 de novembro de 1861, no concelho da Sertã, distrito de Castelo Branco, e morreu aos 94 anos, numa “casa modesta dos Telheiros da Ajuda”, em Lisboa, onde permanece “uma vaga memória de um antigo mordomo dos palácios”, escreve o museu.
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