Foi notícia a publicação da Diretiva (UE) 2018/1673, de 23 de outubro de 2018, relativa ao combate ao branqueamento de capitais através do direito penal. Esta Diretiva — inserida num contexto de ampla pedagogia e legislação sobre o tema — foca-se no robustecimento dos expedientes punitivos. E é justamente sob esse desígnio que vem introduzir o dever dos Estados assegurarem que “certos tipos de atividades de branqueamento de capitais também sejam puníveis quando cometidas pelo autor da actividade criminosa que gerou os bens (autobranqueamento)”.

Com esta medida, o legislador europeu retoma uma questão que tem suscitado notória divergência — na Alemanha e em Itália, por exemplo, está excluída a punição do autobranqueamento — e que passa por deslindar se, de um ponto de vista factual e jurídico, poderá o autor do crime principal (isto é, o crime que gerou a vantagem ilícita posteriormente carecida de “lavagem”) responder sempre e simultaneamente pelo crime sucessivo (o crime de branqueamento).

Considere-se o seguinte exemplo: o funcionário público A aceita, a troco de pagamento, decidir um procedimento a favor de B. De seguida, A e B encontram-se numa obscura rua dos arredores da cidade, onde B entrega a A a quantia prometida, em numerário, no interior de uma mala. O exemplo é cinematográfico, e não se ignora que hoje em dia as malas foram substituídas por complexas operações financeiras destinadas a iludir a origem do pagamento, por exemplo, através de circuitos off-shore — mas o dilema que subjaz à punição do autobranqueamento é aqui bem visível: deverá ou não o funcionário A responder, para além do crime de corrupção, também pelo crime de branqueamento, por referência àquele preciso instante em que actuou de forma a receber dissimuladamente o seu pagamento? Ou serão esses actos ainda uma realidade abrangida e punida pelo crime principal de corrupção?

Pese embora a aparente convicção da letra da Diretiva, a solução para este dilema não pode prescindir da análise casuística àquele instante, mais ou menos dilatado, de “lavagem” e entrega do pagamento e ao seu correcto enquadramento jurídico, sob pena de violação de regras elementares de concurso de crimes e do princípio ne bis in idem. Assim, caso as actuações subsequentes à prática do crime principal sejam exclusivamente orientadas para subverter o sistema financeiro, a possibilidade de autonomização desses actos abrirá a porta à punição também pelo crime de branqueamento.

Mas nem sempre assim sucederá: como se intui da experiência prática, muitas vezes a forma dissimulada de entrega do pagamento é co-natural e indissociável do plano subjacente ao crime principal. Acresce que a formulação de uma regra automática de punição do autobranqueamento suscita uma curiosa inquietação: afinal, que acto poderia o agente corrompido praticar para evitar a punição (também) por branqueamento? O único cenário que se antevê implicaria uma situação surreal em que o próprio agente declararia às autoridades a receção de um pagamento… ilícito — solução incompatível com o princípio da proibição da auto-incriminação.

Em suma, só uma insustentável concepção de prática automática de um crime como consequência de um primeiro acto criminoso permitiria acolher tout court a pretensão da nova Diretiva. Cabe agora aos intérpretes e aplicadores encontrar o ponto de equilíbrio casuístico para evitar a aplicação cega de uma regra que, sem esta operação anatómica prévia, pode redundar na injusta dupla punição de um só acto.