Com a morte do Papa Francisco, aos 88 anos, muito do seu legado servirá de herança ao homem que o substituirá – e que sempre terá a possibilidade de não querer continuar essa herança. No entanto, isso será um risco: o papa argentino moldou a ‘sua’ igreja à vontade dos fiéis, ou àquilo que parecia ser a vontade da maioria, transmitindo-lhe um caráter de modernidade que se impunha no século XXI. Parte do seu legado – as nomeações de bispos e cardeais com uma visão de mundo, normas que tornaram a Cúria Romana mais aberta e menos clerical, maior visibilidade às mulheres, uma visão não fatalista da pobreza e da exclusão – são diretrizes que saem diretamente do Concílio do Vaticano II (1962-65), aberto por João XXIII e encerrado por Paulo VI, mas que em determinado momento foram esquecidas. Um olhar diferente para os homossexuais e transgéneros, bem como para os não crentes (foi Paulo VI quem fundou o Conselho para os Não-Crentes, assim como fez para os não católicos), também marcou a postura de Francisco – que, não há como negar, sofreu uma derrota no que diz respeito às mulheres.
A escolha do nome ‘Francisco’ foi já um sinal – mas que foi preciso confirmar. E o Papa fê-lo, apesar da ‘vigilância’ próxima do Papa anterior, Bento XVI, e da reserva que a Cúria mostrava face à revolução que o argentino tentava empreender. Vale a pena lembrar que Francisco era, também, um chefe de Estado, o que o mantinha dentro de um perímetro político de obrigações às quais nunca virou as costas. Por isso, foi um homem que nunca teve medo das palavras, mesmo quando estas carregavam significados, vontade política e reservas face à atuação de alguns dos seus homólogos. Não foi, portanto, um Papa de hegemonias – em princípio, nenhum é, mas Francisco nunca teve de ficar de um dos lados. Nesse contexto, o Vaticano sob o seu comando nunca se esqueceu de denunciar, apontar e desvalorizar as reservas que contra ele foram ouvidas. Vale lembrar que nem toda a Igreja o acompanhou, e talvez devesse ter feito mais, mais cedo, para enfrentar a devassa que contaminou algumas almas de altas instâncias do Estado que comandava.
Nomeou novos cardeais em partes do mundo que antes nunca haviam tido um, como Cabo Verde, Tonga, Myanmar, Sudão do Sul e Mongólia, entre outros, que agora elegerão o novo Papa. O sucessor de Francisco será legitimado por um grupo muito mais multicultural e internacional do que o Papa que agora desaparece, e isso constitui, sem dúvida, uma das iniciativas mais democráticas no interior de uma organização que, até há poucas décadas, era eminentemente italiana.
Destaque merece também a criação do Conselho dos Cardeais, o C-9, formado por nove elementos da Cúria, cuja função era reestruturar o organismo. O resultado de dez anos de trabalho foi uma nova Constituição Apostólica, a Praedicate Evangelium (Proclamem o Evangelho), promulgada em 2022. Com ela, o Vaticano adotou uma postura mais recetiva e aberta, que certamente irá marcar o seu sucessor – até pela circunstância de os fiéis já não estarem dispostos a ‘aturar’ algumas das antigas posturas.
O homem que se segue
Enterrada está a teoria da infalibilidade do Papa. Com a sua morte, inicia-se o processo para selecionar o seu sucessor, um conjunto de cerimónias marcadas pela tradição que culminará no habitual fumo branco que anuncia o novo líder da Igreja Católica. Os assuntos correntes do Vaticano ficarão, para já, a cargo do cardeal camerlengo, cargo atualmente ocupado por Kevin Farrell, nomeado pelo Papa em 2019 – que foi também o responsável por declarar a morte de Francisco.
Francisco deixou ordens para ter um funeral simplificado e expressou o desejo de ser enterrado na Basílica de Santa Maria Maior, em Roma, para poder estar próximo da sua imagem favorita de Nossa Senhora. O caixão será de madeira simples. Apenas 15 dias após a morte de Francisco (mas não obrigatoriamente) é que se iniciará o conclave, a reunião de cardeais que define o próximo líder da Igreja Católica. Também aqui houve mudanças recentes, mas sob a influência de Bento XVI: caso assim o decidam, os cardeais podem iniciar a reunião antes dos 15 dias definidos ou, no máximo, 20 dias após o óbito. As reuniões decorrem na Capela Sistina e, com exceção do primeiro dia, quando ocorre apenas uma votação, os cardeais votam duas vezes diariamente. A aprovação de um novo Papa só pode ocorrer com uma maioria qualificada de dois terços, e, caso não haja sucessor ao fim de 13 dias, a corrida é limitada aos dois cardeais com mais votos – embora continue a ser necessária uma maioria qualificada. Os cardeais estão expressamente proibidos de contactar o mundo exterior, sendo-lhes vedado o uso de telemóveis, internet ou quaisquer aparelhos eletrónicos com capacidade de estabelecer chamadas ou enviar mensagens. A conclusão do processo é anunciada ao mundo com fumo branco, resultado da queima dos boletins de voto dos cardeais juntamente com produtos químicos especiais.
Inevitavelmente, passadas as primeiras horas após a morte de Francisco, a imprensa, especializada ou não, encheu-se de listas de possíveis sucessores (algumas, certamente, já preparadas). Eis os mais importantes. Em teoria, qualquer católico romano batizado é elegível para o papado, mas nos últimos 700 anos, o Papa sempre foi escolhido entre os cardeais – e vale a pena recordar que, em 2013, o cardeal argentino Jorge Bergoglio estava longe de ser o favorito para suceder a Bento XVI. No entanto, ganhou a votação após 24 horas e cinco rondas de votação, o que não é muito.
Dos 266 papas que já passaram pelo Vaticano (e não só), 217 vieram da Itália, mas os três últimos foram de fora. O cardeal italiano Pietro Parolin, de 70 anos, secretário de Estado do Vaticano e número 2 de Francisco desde 2013, pode ser visto como o sucessor natural. Em seu favor, tem uma longa carreira diplomática – que o levou, por exemplo, até à China – e o controlo do Estado ao longo da doença que acabou por vitimar Francisco. Outro italiano é o cardeal Pierbattista Pizzaballa, da Lombardia, que é o patriarca latino de Jerusalém. Aos 60 anos, tradicionalmente considerado jovem demais, fala hebraico e admitiu ter conversado com o Hamas “por necessidade”.
Se o Colégio dos Cardeais optar novamente por um não-europeu, o cardeal filipino Luis Tagle pode ser o favorito. O ex-arcebispo de Manila, de 67 anos, está focado, tal como o Papa agora desaparecido, na justiça social e na luta contra a pobreza. A Igreja também pode fazer história se eleger o seu primeiro Papa africano na era moderna: o cardeal Peter Turkson, de Gana, que era considerado um dos favoritos durante o conclave de 2013, está novamente no topo da agenda.
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