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Wolfgang Münchau: “Desintegração europeia é o mais provável a longo prazo”

Jornalista e analista, 63 anos, fundador do “Financial Times Deutschland”. correspondente em Washington e Bruxelas para o “The Times”, hoje é diretor do “EuroInteligence”. Conhecedor profundo da economia europeia, publicou “Kaput”, a história da descida aos infernos da economia alemã e como ela ficou amarrada a um modelo de crescimento esgotado: a classe política e o país assobiam para o lado.
9 Maio 2025, 07h10

Jornalista e analista, 63 anos, fundador do “Financial Times Deutschland”, correspondente em Washington e Bruxelas para o “The Times”, hoje é diretor do “EuroInteligence”. Conhecedor profundo da economia europeia, publicou “Kaput”, a história da descida aos infernos da economia alemã e como ela ficou amarrada a um modelo de crescimento esgotado: a classe política e o país assobiam para o lado.

O que muda para a Alemanha com a eleição de Merz?
Há realmente mudanças… a rigidez orçamental começou a ser revista, o que é importante, mas também inevitável perante o contexto. Mas os problemas vêm de trás e exigem mais alterações. Claro, o governo de Merz ainda não aterrou, veremos o que acontece, embora eu não esteja otimista. Não basta resolver um problema burocrático, isto é, não é suficiente alterar a regra que impõe um travão à dívida pública para alterar a trajetória macro-económica que leva décadas a fazer o mesmo caminho: estou a falar da obsessão em exportar e, em simultâneo, deprimir o investimento, em vez de o valorizar.

Com o investimento sempre a chegar aos mesmos setores, em particular o automóvel…
A história é muito simples: a Alemanha subsidiou as exportações, não se abriu ao investimento estrangeiro e acabou por ficar numa bolha de auto contentamento que deu péssimos resultados. Um país com esta dimensão, que regista saldos de 8% na sua balança corrente, não está a perceber o impacto desta decisão e deste excedente gigante para si e para os outros países.

Todos sonham em atingir esses números…
Para os países de menor dimensão não há grandes problemas, porque pesam pouco na economia global e porque basta serem líderes num determinado produto para isso transformar os números. Mas para um Estado com o peso que tem o alemão, isso provoca a desequilíbrios globais e não pode continuar eternamente. Do ponto de vista interno cria um contexto em que a poupança é sobrevalorizada e a diversificação do investimento desvalorizada, designadamente investimentos em áreas que escapem ao padrão de sucesso existente e dado como sendo o mais fiável, como é o caso do motor de combustão.

O resultado está à vista…
Instalou-se uma mentalidade neomercantilista, o objetivo do país e das suas políticas públicas passou a ser apenas criar grandes excedentes com origem nas exportações e alimentar os campeões industriais. A Alemanha inteira aderiu entusiasticamente a esta ideia. Partidos de direita ou de esquerda, até os media, passaram a falar nos campeões mundiais das exportações, como se isso existisse ou não exigisse debate para evitar um pensamento fechado com prazo de validade. Esta ilusão incentivou até a indústria automóvel a criar dispositivos fraudulentos para enganar os testes de emissões [de CO2] e, assim, prolongar a vida do produto. Quiseram dar mais tempo de vida a uma tecnologia antiga em vez de investirem numa nova. O atraso da indústria automóvel alemã nos motores elétricos encontra aqui uma das explicações.

Havia a convicção que o motor a combustão seria eterno.
A política industrial do país fez-se à custa da não-diversificação, o que coloca a Alemanha perante uma recessão estrutural. O modelo económico está esgotado, embora ainda possam surgir anos bons, mas serão cada vez menos e com menor impacto. O risco de concentração nalgumas poucas áreas, muito bem exemplificado pela indústria automóvel, é uma ameaça real a uma série de outras indústrias fornecedoras que. por isso mesmo, também estão em risco. Vão ser as mudanças na dívida a mudar tudo isto de repente? Não me parece, até porque os impactos financeiros serão relativamente pequenos face ao que é preciso fazer, além de haver um problema cultural.

A dívida pública alemã é baixa (66% do PIB). Ao contrário da maioria dos países europeus ou dos grandes países fora da UE, há espaço para investir.
Há, sim, e a dívida pública pode aumentar confortavelmente até aos 80% do PIB e ainda assim continuar abaixo da dívida de França, Itália e Espanha, quanto a Portugal… está a fazer uma redução sustentada. Mas veja o seguinte: o estado dos comboios atingiu um nível de degradação espantoso. A Alemanha é um país muito descentralizado, o comboio e as auto-estradas são canais fundamentais para manter o país ligado de forma rápida e eficiente. O que temos hoje custa a acreditar: a falta de investimento do Estado foi tão prolongada e profunda que são precisos 150 mil milhões só para modernizar a ferrovia. Lembra-se do que aconteceu em Génova há uns anos, uma ponte que colapsou? Na Alemanha também temos pontes degradadas e numa delas, perto de Colónia, foi preciso proibir o trânsito de pesados. Há também uma auto-estrada fundamental que liga o norte ao sul que tem uma parte encerrada. A Alemanha teve e ainda tem grandes infra-estruturas públicas, mas a falta de investimento é muito visível, o que significa que agora será preciso gastar muito dinheiro.

O setor energético também implodiu com a sobre-dependência da Rússia e com o fim da energia nuclear…
As relações com a Rússia tornaram-se transversais a quase todos os partidos e tinham a indústria como principal ligação. Fez-se o Nord Stream 1, depois o 2 e ignorou-se durante anos o que estava a acontecer com as escolhas de Putin. O mercado de energia alemão estava nas mãos da Gazprom, que produzia e operava os gasodutos e até armazenava a energia. Apesar deste sobrepeso negocial, os preços cobrados à Alemanha eram mais baixos do que os praticados no mercado global, o que levou o país, no que diz respeito ao gás, a tornar-se totalmente dependente da Rússia até à invasão da Ucrânia, apesar de nas primeiras semanas muita gente ter vivido em negação. Ingenuidade e imprudência definem a política energética alemã. Imprudência na relação com a Rússia. Ingenuidade com o fim apressado do nuclear. Os Verdes, quando chegaram ao poder, tinham um país em que o nuclear ainda fornecia 14% da energia, mas o país… tornou-se antinuclear, sem medir os custos e sem olhar seriamente para os riscos. Para um país com muitas indústrias baseadas no consumo intensivo de energia, como metal, os químicos e o vidro, isto foi uma tragédia, criou dependência política.

Podem construir novas centrais nucleares…
Demoram 15 anos a construir e são projetos impossíveis de concretizar, porque serão sempre atravessados por inúmeros processos judiciais, nacionais, regionais, pessoais, coletivos… e muitas hesitações políticas. Penso que só existiria uma maneira de contornar este problema: designar estes projetos como sendo de elevado interesse nacional, blindando-os contra os processos que os boicotam.

Suspender a democracia…
Em certo sentido, sim, mas numa área muito concreta e vital para o desenvolvimento do país. Não há muitas soluções para uma economia tão industrializada como a Alemanha, a não ser que, finalmente, se dê espaço à diversificação dos investimentos e que eles entrem em setores onde as empresas alemãs quase não existem, como a área tecnológica. Isto significa desindustrializar parte do país. Não me parece que a classe política e o país aceitem esta ideia, por mais evidente que ela seja há já alguns anos. Produzimos industrialmente vários produtos que estão condenados ou que não faz sentido económico produzi-los na Alemanha. Mas o debate público não é sobre estes problemas, a discussão anda sempre à volta dos preços da energia.

Na verdade, como explica no seu livro, também não existem fontes de financiamento para projetos tecnológicos inovadores. Os bancos alemães, hoje enfraquecidos, não entendem estes negócios.
O sistema financeiro alemão está em dificuldades, já não pesa quase nada no DAX. Vale pouco mais de um por cento da capitalização bolsista e valia dez vezes mais no início do século. Os bancos não compreendem a economia não-industrial e muitos deles, não apenas os de capital público, foram geridos por critérios políticos, o que limitou muito a concessão de crédito ao setor tecnológico, que não goza da proteção histórica da indústria. Como a Alemanha não tem capital de risco, ou não o tem com a expressão americana, as fontes de financiamento são muito limitadas e insuficientes. A área tecnológica não pode ser olhada como se fosse uma indústria tradicional, mas na Alemanha os critérios financeiros de avaliação das start-ups são semelhantes, o que as transforma em maus negócios, embora não sejam. Os bancos estão fora deste mercado e o capital de risco não percebe que tecnologia e indústria são mundos diferentes. E como não há um mercado de capitais forte, de novo como acontece nos EUA, o resultado é evidente: há pouco financiamento para estes empreendedores e sem capital não há inovação e as empresas não ganham escala.

E as políticas públicas? Tem havido programas de apoio…
Que não funcionam. Não têm músculo financeiro ou são mal geridas. Junta-se a isto as más infra-estruturas de telecomunicações. A rede de internet é fraca e lenta, e isto é muito, muito básico, básico e limitador, porque impede que as ideias sejam concretizadas pelos empreendedores. Os erros cometidos pelos diferentes governos nesta área explicam este atraso tão evidente. Fizeram as escolhas erradas que nunca foram corrigidas. Mas volto ao ponto inicial. O motor de combustão deu uma longa vida e muitos lucros, mas a Alemanha ficou parada no tempo. Quando o assunto era engenharia mecânica, a ligação entre a academia e as empresas funcionava bem, tinha resultados concretos; mas a transição para a economia tecnológica digital falhou e a ligação entre o saber e o fazer foi, em larga medida, interrompida. A Alemanha perdeu o comboio da inteligência artificial, dominada pelos EUA e pela China.

Volto à mesma pergunta: o atraso é recuperável?
Os excedentes orçamentais dão margem de manobra, mas é preciso rever o sistema de incentivos que deixa para trás o setor industrial das empresas familiares, que é, como sabe, uma parte central da economia alemã. É por isso que este processo de mudança não é evidente, exige uma mudança cultural profunda, pede investimento em infra-estruturas físicas e digitais e coloca desafios no que diz respeito aos incentivos e à sua boa gestão. Penso que as empresas estão a reagir melhor do que os governos a estes problemas, mas parece muitas vezes tratar-se apenas de gestão de danos e não uma verdadeira transição. A Alemanha só conheceu o modelo de sociedade baseado na indústria e nas exportações, com uma forte ligação aos bancos e às clientelas políticas, a que junta desprezo ou desconfiança pelo mundo digital. Temos de nos preparar para um futuro pós-industrial para corrigir o declínio do modelo económico alemão.

De que forma é que a crise alemã afeta a UE? Vamos empobrecer e isso é um risco para o projeto europeu?
Sem dúvida. A UE é uma economia de tipo ‘hub and spokes’, com a indústria transformadora alemã no centro. Grande parte da Europa de Leste está totalmente dependente da Alemanha, tal como os fabricantes de outros países da UE. Uma recessão estrutural na Alemanha levará vários países da UE a reconsiderar o seu modelo económico, afastando-se de um modelo que depende fortemente do mercado único europeu.

A Alemanha tem sido o principal obstáculo a uma verdadeira união financeira: o crescimento da UE será afetado?
Não consigo ver uma Europa próspera sem uma união política e fiscal. A Europa teve a oportunidade de adotar uma união política durante a crise do euro, mas decidiu não seguir essa via, em grande parte porque a Alemanha não a apoiou. Vejo que o apoio político a essa versão forte da integração europeia está a diminuir em muitos países. Considero que a desintegração é o resultado mais provável a longo prazo, com base no sentimento político atual. Admito que isto pode mudar, mas as oportunidades de união política não ocorrem com muita frequência. Aconteceu em 2012.

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