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Beija e põe-te a andar

Este “kiss and ride” é uma pequeníssima amostra de uma epidemia – a incorporação, sem critério, de palavras e expressões inglesas no nosso vocabulário quotidiano – que alastra a olhos vistos por todo o lado e que está a causar não só danos gravíssimos à língua portuguesa, mas também às caraterísticas específicas do povo português.
6 Maio 2019, 07h15

Recentemente, um colega residente na zona metropolitana de Lisboa dizia-me que estava revoltado com a designação “kiss and ride” dada às zonas de embarque e desembarque de passageiros que estão a ser criadas junto às escolas da capital. Dizia-me não aceitar a facilidade com que os portugueses atribuem nomes estrangeiros a realidades que poderiam e deveriam ter nomes portugueses, sobretudo quando isso acontece com o beneplácito das escolas, que deveriam ter um papel importante na defesa e preservação da nossa língua. Disse-lhe que também no Funchal estavam a ser criadas essas zonas com a mesma designação, junto de algumas escolas.

Depois desta conversa, dei comigo a tentar perceber o porquê de apelidar esta faixa de largada e embarque de passageiros de “kiss and ride” e confesso que, tendo em conta o significado literal das palavras, não percebi. Será que, se pensarmos que a sua tradução literal é “beija e cavalga”, consideraremos acertado este batismo? Julgo que poucos concordarão com isso. Bem sei que a expressão, como acontece com todas as traduções, pode ter outros significados menos literais, por exemplo, “cumprimenta e arranca”, “cumprimenta e vai”, “cumprimenta e segue”, “saúda e põe-te a andar”, “larga/carrega e segue”, “cumprimento rápido”, entre tantas outras possibilidades.

Nenhuma delas interessa para o essencial desta discussão: porquê procurar uma designação estrangeira para algo que pode, com pertinência, ser designado pela língua portuguesa. Se os responsáveis tivessem dúvidas, até poderiam, com vantagem para a promoção da participação cívica dos cidadãos, promover uma auscultação ou votação virtual. Esse seria o caminho certo, em vez de embalarem em facilitismos e modas importadas. Tenho a certeza de que a criatividade portuguesa não teria dificuldade em encontrar um termo divertido adequado à situação.

Desde já, digo que não aceito o argumento de que se trata de uma nova realidade que implica a adaptação do código de estrada ou dos sinais de trânsito, que, como sabemos, são regras e símbolos que se pretendem universais. Nada disso!

Por outro lado, deixo claro que concordo com a criação de mecanismos que possam facilitar a circulação do trânsito e aumentar a segurança de todos, sobretudo em zonas de grande congestionamento, como acontece à porta das escolas no início e no final dos turnos letivos, pelo que concordo, obviamente, com a marcação de faixas específicas junto das escolas com aqueles objetivos.

No entanto, aqui, a discussão é outra: este “kiss and ride” é uma pequeníssima amostra de uma epidemia – a incorporação, sem critério, de palavras e expressões inglesas no nosso vocabulário quotidiano – que alastra a olhos vistos por todo o lado e que está a causar não só danos gravíssimos à língua portuguesa, mas também às caraterísticas específicas do povo português. Ao aceitá-la sem resistência, estamos a contribuir para a desvalorização da língua portuguesa e a ajudar a matar a forma de ser português. Quanto mais desprezarmos a nossa língua, mais banais ficaremos e estaremos, no limite, a contribuir para a criação de seres humanos sem identidade própria.

Isto é diferente de aprender a falar outras línguas, o que é muito positivo e deve ser promovido. Aprender novas línguas enriquece; contaminar a língua portuguesa com estrangeirismos desnecessários empobrece-nos.

Ao longo da história da língua portuguesa, assistimos à evolução de palavras de origem estrangeira até serem incorporadas na linguagem corrente, a muitas polémicas sobre a importação de estrangeirismos, conhecemos grandes autores (Eça é um bom exemplo) que os usaram amiúde, mas o que hoje se passa é diferente de tudo o que alguma vez aconteceu à nossa língua.

É urgente pararmos, sob pena de, qualquer dia, nem falarmos, corretamente, português nem inglês!

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