O norte de África volta a estar no centro das preocupações dos Estados Unidos: a região está a entrar novamente numa fase de alguma turbulência e o Departamento de Estado norte-americano está interessado em controlar os acontecimentos, ao invés de ter que se deparar com os resultados dos efeitos colaterais – como sucedeu há oito anos, quando o Ocidente correu a defender aquilo que viria a chamar-se a ‘primavera árabe’.
É nesse quadro que os Estados Unidos mantiveram recentemente mais uma reunião com o Serviço de Ação Externa da União Europeia, na tentativa, entre outros assuntos, de agregarem uma resposta comum para o problema.
É que a costa norte do Mediterrâneo está a entrar mais uma vez em ebulição – num quadro em que a costa leste do mar interior também está em pleno sobressalto, que se arrasta a norte, passando pelo Bósforo para o Mar Negro. No norte do Mediterrâneo, o Ocidente confronta-se neste momento com o início da guerra civil, mais uma, na Líbia; com a contestação ao regime na Argélia; e com a tentação do presidente egípcio, Abdel Fattah al-Sissi, de se eternizar no poder por via da alteração da Constituição – ou de outra, se esta falhar.
O secretário norte-americano David M. Satterfield, um dos responsáveis pelos assuntos do Próximo Oriente no Departamento de Estado, disse em conference call – para um conjunto restrito de órgãos de comunicação social de que o Jornal Económico faz parte – que “estamos a acompanhar de perto os eventos na Líbia”. O ‘nós’ é a União Europeia, os Estados Unidos e a comunidade internacional. Apoiamos firmemente o trabalho do representante especial da ONU, Ghassan Salamé, para tentar obter um acordo político e uma reconciliação política no país. Observamos com preocupação as crescentes baixas civis e os danos nas infraestruturas, especialmente nos últimos dias”.
Depois dos acontecimentos em redor da ‘primavera árabe’ – que, no limite, foram a causa da dissolução do regime líbio de Muammad al-Kaddafi – e do aparente ‘engano’ em que incorreram os parceiros ocidentais, tanto a União Europeia como os Estados Unidos na altura liderados por Barack Obama – os dois blocos parecem querer ser mais fleumáticos na reação ao conflito líbio na forma como encaram a questão do ponto de vista político.
Por parte dos Estados Unidos, os analistas consideram sintomático não só o facto de a Casa Branca estar preocupada em conseguir o alinhamento dos países da União Europeia em relação à Líbia, mas principalmente a nota de apreço pelas iniciativas da ONU.
De facto, perante o histórico das relações entre as Nações Unidas e o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, a referência de Satterfield à ONU e ao seu representante para a Líbia, Ghassan Salamé – ex-ministro da Cultura do Líbano e académico em Paris – parece ser a tentativa de fazer uma ponte para resolver o problema.
As reservas de França
David M. Satterfield não quis comentar a posição da França em matéria da Líbia – “obviamente, não vou comentar as posições atribuídas a outros governos”, comentou – mas informou que, em poucos dias, irá deslocar-se a Paris para debater o assunto.
A França está desde sempre atenta à questão líbia: Emmanuel Macron conseguiu juntar em Paris, em maio de 2018, os dois protagonistas da política atual na Líbia. O mundo respirou de alívio, mas foi cedo demais: o primeiro-ministro líbio, Fayez al-Sarraj, e o marechal Jalifa Hafter (considerado um homem da CIA no terreno) concordaram, entre outras coisas, em marcar eleições presidenciais antes do fim do ano. Como se sabe, não aconteceram.
Entretanto, segundo relatos de fontes diplomáticas, a França e o resto da União Europeia não se entendem sobre a matéria. A tal ponto que a França terá bloqueado uma declaração da União Europeia exigindo que Jalifa Hafter interrompesse a sua ofensiva de imediato. Acordando ódios recentes com a França, a Itália, sempre pela voz do ministro do Interior, Matteo Salvini, disse que não ficará indiferente ao que se passa na Líbia – sendo para já incerto o que quereria dizer o ministro com as suas declarações. Depois delas, o primeiro-ministro italiano, Guiseppe Conte – cada vez mais emparedado entre os desentendimentos dos dois partidos que formam a coligação do governo – tentou acalmar os ânimos e esvaziar o conflito diplomático que se antevia.
“Temos um diálogo e coordenação muito próximos com todos os Estados europeus críticos que estão envolvidos, e isso certamente inclui a Itália. Estamos conscientes das preocupações especiais que a Itália tem por causa de proximidade com o litoral líbio. Respeitamos isso, e sabemos que a Itália quer uma solução duradoura, que garanta a segurança na Líbia e nas fronteiras. Esse é um objetivo que os Estados Unidos apoiam fortemente também”, disse o secretário de Estado norte-americano.
Quem é Hafter?
Hafter era um militar bem instalado no regime de Kaddafi até que, em 1987, foi feito prisioneiro no Chade. Por razões desconhecidas, Kaddafi não prestou apoio a Hafter e em 1990 foi libertado por forças especiais dos Estados Unidos. Passou os 20 anos seguintes no exílio, numa casa perto da sede da CIA em Langley (Virgínia), e retornou à Líbia em 2011, quando a revolta contra Kaddafi teve início.
Desde então, o seu poder aumentou no leste, com o apoio indispensável dos militares egípcios. Numa entrevista à revista ‘Jeune Afrique’ de fevereiro de 2018, Hafter declarou que “a Líbia não está madura para a democracia. É nosso objetivo, mas é prematuro esperar por isso. Talvez as futuras gerações o consigam”.
Artigo publicado na edição nº 1985 de 18 de abril do Jornal Económico
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