No filme Casino Royale, o famoso agente secreto britânico James Bond (conhecido pelo nome de código 007) ganha 80 milhões de francos ao espião Le Chiffre, da agência secreta soviética SMERSH, numa mesa de bacará. A cena, inspirada no dia a dia do histórico Casino Estoril na década de 1940, recorda o tempo em que espiões das potências apoiantes dos Aliados e do Eixo operavam entre rumores e intrigas na Península Ibérica. Longe de se tratar apenas de ficção, as missões secretas dos Aliados permitiram manter Portugal e Espanha longe da influência nazi e revelar-se-iam cruciais para o desenlace da Segunda Guerra Mundial.
Com base em documentos mantidos em segredo durante décadas por vários serviços secretos, o escritor britânico Mark Simmons regressa à Península Ibérica da década de 1940, com o livro “Operação Ibéria”, para dar a conhecer a verdadeira dimensão da espionagem em Portugal e Espanha durante o conflito. Ao Jornal Económico, Mark Simmons dá conta de que, “no final de 1941, o fluxo de informação de (e para) Lisboa era maior do que nos restantes gabinetes do serviço de informações secretas britânico (SIS)”, popularmente conhecido como MI6. A partir de Lisboa, a Inglaterra conseguiu, entre outras coisas, trocar as voltas à Alemanha nazi sobre o desembarque aliado que mudou o curso da guerra, e impedir os alemães de raptar o duque de Windsor – simpatizante dos ideais nazis – e fazer dele o rei-fantoche da Grã-Bretanha.
No entanto, Lisboa “não era considerada uma cidade prioritária para a espionagem” antes da guerra, conta Mark Simmons. Foi a neutralidade que o país adotou durante a guerra e a sua proximidade ao Atlântico que fizeram com que a capital portuguesa se tornasse num “antro de espionagem” e duplicidade, em 1940, quando a França caminhava a passos largos para a derrota. “[O presidente do Conselho de Ministros, António de Oliveira] Salazar não era particularmente um aliado da inclinação política britânica contra a Alemanha e Itália”, indica Mark Simmons. “No coração de Salazar, estava a extrema-direita próxima do fascismo italiano. Mas Portugal tinha sido um aliado britânico durante centenas de anos e o facto de o povo português favorecer Inglaterra era um fator que Salazar não podia ignorar. Face a isso, adotou pela neutralidade”, explica.
O que os serviços secretos faziam não incomodava o Governo português, desde que as leis fossem cumpridas e os interesses do país não fossem afetados. Isso fez com que o Estoril, a 16 quilómetros da capital, servisse de palco principal para as redes de espionagem de ambos os lados. Os hotéis Palácio e Inglaterra funcionavam como uma espécie de ‘quartel-general’ para os Aliados, enquanto os alemães, a poucos passos dali, operavam no hotel Atlântico. O ponto de encontro para ambos era o salão de baile e casino do Estoril, frequentados por refugiados endinheirados e famílias reais em fuga. As atividades que aí decorriam eram acompanhadas de perto pela Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), o que permitia a Salazar controlar tudo em surdina.
Eduard Lucas, correspondente do London Times, descobriu o que acontecia a quem aborrecia o capitão Agostinho Lourenço, diretor da PVDE, após publicar uma série de artigos onde dizia que o povo português era pró-britânico, enquanto o Governo nutria simpatias pelos germânicos. Foi detido pela PVDE na véspera de Natal e presente a interrogatório durante longas horas. Acabou por ser deportado em janeiro de 1941. Para salvaguardar a neutralidade e dar uma falsa aparência de justiça, a PVDE expulsou também um outro jornalista italiano. Assim, nenhum dos lados da contenda podia apontar o dedo ao Governo de estar a ser parcial ao condenar determinada fação.
Entre os dois lados
As tentativas de garantir o equilíbrio diplomático acabaram por “agradar a gregos e troianos”. Com a invasão da Rússia, em 1941, a Alemanha acabou por perder a sua principal fonte de volfrâmio (ou tungsténio), usado na indústria do armamento para endurecer o aço. Os alemães viraram-se então para Portugal, que era na altura o principal produtor da Europa, com minas no centro e nordeste do país. Se antes da guerra o minério rondava as 300 libras por tonelada, rapidamente chegou às oito mil libras, em julho de 1942, o que obrigou o Governo a intervir, estabelecendo limites para a produção e o preço que podia ser cobrado.
Os portugueses exigiam o pagamento em ouro de todo o volfrâmio que seguia para a Alemanha. O ouro do Reichsbank era depositado no Banco Nacional Suíço, em Berna, e usado para comprar escudos à Suíça. As reservas de ouro portuguesas ascenderam, assim, de cerca de 63,5 toneladas, em 1939, para mais de 350 toneladas no final da guerra, sendo que mais de um terço vinham da Alemanha. Para proteger a neutralidade, Portugal vendia volfrâmio também aos ingleses e negava que houvesse contrabando para a Alemanha, apesar de ter sido ameaçado com sanções económicas pelos Aliados. À medida que se tornava evidente que a Alemanha ia perder a guerra passou a chegar cada vez mais ouro e outros artigos valiosos, roubados nos países ocupados pelas potências do Eixo. Mark Simmons dá conta de que, em 1943, “já era do conhecimento geral que parte desse ouro provinha das vítimas do Holocausto”. “Dentes, relógios, anéis e outras peças de joalharia eram derretidos e transformados em lingotes”, indica o escritor.
Embora tivesse alguma simpatia pelas potências do Eixo, Salazar acabou por se virar mais para Inglaterra e restantes potências aliadas. Exemplo disso foi a ideia de acomodar os duques de Windsor na casa do banqueiro Ricardo Espírito Santo, na Boca do Inferno, em 1940. A sugestão terá partido do próprio Salazar numa altura em que os nazis tentavam convencer Eduardo VIII – que abdicara da coroa para o irmão, o rei Jorge VI, devido ao casamento com a norte-americana divorciada WallisSimpson – a abraçar a causa alemã e desenhavam planos para raptá-lo. A casa ficava longe da azáfama do Estoril e de Lisboa e permitia, ao mesmo tempo, manter o britânico debaixo de olho e saber com quem se encontrava. Os relatórios chegavam diariamente à secretária de Salazar.
Mas os britânicos não tardaram a mostrar preocupação. Ricardo Espírito Santo era conhecido por fazer negócios tanto com os ingleses como com os alemães e o facto de ser amigo chegado do barão Oswald von Hoyningen-Huene, embaixador alemão em Portugal, contribuiu para alimentar ainda mais os receios da Grã-Bretanha. Temia-se que o duque fosse seduzido pelas promessas alemãs de regressar ao trono de uma Grã-Bretanha ocupada pela Alemanha, dada a predisposição para promover a paz entre Inglaterra e a Alemanha e apoiar a ideologia nazi. O duque acabou, no entanto, por seguir viagem para as Bahamas, mostrando que os receios dos Aliados eram infundados.
Mark Simmons conta ainda no livro que o “desejo secreto” de Salazar de que “a Inglaterra ganhasse a guerra” ficou claro quando Portugal permitiu que os Aliados usassem as suas ilhas atlânticas como bases durante a batalha contra os submarinos alemães, iniciada em 1943. Foi o caso da Base das Lajes, nos Açores, que foi cedida aos ingleses e norte-americanos durante a guerra.
Espanha em leilão
Apesar de Salazar ter sido o grande impulsionador do chamado Pacto Ibérico (tratado de não agressão assinado por Portugal e Espanha, em 1939), manter Espanha fora da Segunda Guerra Mundial não foi tarefa fácil. O então ditador espanhol Francisco Franco convenceu-se desde cedo que Espanha precisava de adotar o modelo fascista italiano, mas a difícil situação financeira a que o país foi conduzido pela Guerra Civil frustrou os desejos do Caudillo. “O Pacto Ibérico funcionou, em grande parte, para Salazar, e isso acabou por influenciar também Franco”, afirma Mark Simmons.
A reunião do líder alemão Adolf Hitler com Franco em Hendaye, em 1940, foi, no entanto, um ponto de viragem. Depois de Espanha ter mudado o estatuto de neutral para não-beligerante Hitler queria empurrar a França de Vichy para a coligação antibritânica e focar-se no Mediterrâneo. O plano era tomar Gibraltar e melhorar a posição alemã em Marrocos, o que facilitaria o controlo de Portugal, mas para tal era crucial ter a Espanha do seu lado. A reunião terminou com um protocolo que dava conta de que Espanha entraria na guerra, quando estivesse preparada e “em altura a combinar por acordo mútuo entre as três potências”.
O encontro alarmou os Aliados e levou a que fosse desenhada a Operação Golden Eye. O plano consistia em colocar células stay-behind, compostas por agentes secretos e sabotadores britânicos, e só seria ativado caso Espanha se juntasse às forças do Eixo. A Inglaterra tratou também de assinar um acordo comercial tripartido com Espanha e Portugal que serviu como “adoçante” para que ambos os países (Espanha sobretudo) mantivessem a neutralidade. Nas palavras do consultor económico britânico David McAdam Eccles, os espanhóis estavam “em leilão” e cabia a cada uma das partes em conflito, Aliados ou forças do Eixo “assegurar que o leiloeiro os fazia aceitar o seu lanço”.
No verão de 1941, Franco decidiu enviar uma unidade de voluntários (Divisão Azul) para apoiar o exército nazi na luta contra o comunismo na UniãoSoviética. Foi a maior força reunida por um país não-beligerante a lutar na Segunda Guerra Mundial. Tal como Hilter, Franco encarava a cruzada nazi contra a UniãoSoviética como uma “guerra santa”, pois culpava os comunistas pela destruição provocada pela Guerra Civil e recusava que a Europa fosse “presa do comunismo”. A iniciativa mereceu uma reprimenda dos Aliados, mas Franco ignorou os apelos para que se retirasse do conflito e manteve a tese de que conseguia manter boas relações com Inglaterra mesmo participando na frente Leste. O desfecho do conflito e as pesadas baixas da frente espanhola acabariam por fazê-lo mudar de ideias.
Mark Simmons nota, no entanto, que “o Caudillo não era um político fanático com o Führer ou o Duce”. “A sua principal preocupação era Espanha”, indica. Em privado, Franco dava particular atenção aos conselhos do diretor do serviço de informação do Exército alemão (Abwehr), Wilhelm Canaris, com quem tinha grande proximidade desde os anos da Guerra Civil. Canaris admirava Hitler quando este subiu ao poder, mas os massacres que viu na Polónia chocaram-no. Além disso, considerava que a Alemanha tinha “poucas hipóteses de ganhar a guerra”. “Canaris é, de muitas formas, a chave pela qual Franco não se aliou a Hitler, pois aconselhou-o secretamente, enquanto trabalhava para Hitler, a não se juntar à guerra”, explica o escritor.
Franco acabou por seguir o conselho. “Hitler cometeu um grave erro ao insistir em condições antes de fornecer ajuda alimentar a Espanha. Tendo em conta todo o auxílio económico que a Inglaterra prestara, foi Hitler, ao não ordenar o envio de tropas para Espanha, que se tornou o fator decisivo na neutralidade espanhola”, explica o escritor. Tal contribuiu para que a Península Ibérica escapasse dos horrores da guerra.
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