A acreditar nas sondagens, em todas as sondagens, que refletem as intenções de voto dos britânicos nas eleições da próxima quinta-feira, 12 de dezembro, a única dúvida que sobrevive para além da matemática mensurada em gráficos é a de saber-se qual é a extensão do gap entre vencedores (os conservadores) e o resto da tribo – onde se incluem os trabalhistas.
A acreditar em algumas sondagens, não em todas as sondagens, o atual primeiro-ministro, Boris Johnson, já está no interior do perímetro da maioria absoluta, onde se entra a partir dos 326 deputados, e dificilmente voltará a sair. Logo se verá quem tem razão nessa quinta-feira, a próxima, que pode ser a de todas as certezas, mas, até lá, vale a pena observar algumas notas significativas.
A sucessão de sondagens sobre a posição relativa dos partidos permite desde logo observar que no início do ano as intenções de voto numas eleições na altura apenas fictícias (pelo menos para os mais distraídos) aproximava perigosamente conservadores e trabalhistas, deixando muito para trás todos os outros partidos.
Entre fevereiro e junho – numa altura em que todos (pelo menos os que não viviam nas ilhas britânicas) já tinham percebido que a antiga primeira-ministra Theresa May havia finalmente chegada ao ponto em que não tinha a mais pálida possibilidade de resolver o imbróglio do Brexit – a situação complicou-se.
Chegou mesmo ao ponto da caricatura: em apenas algumas semanas, nas de maio, os conservadores chegaram a ser ultrapassados nas intenções de voto pelos trabalhistas e mais tarde ambos foram atirados para segundo plano pelo Partido do Brexit – liderado por Nigel Farage que, ao contrário do que asseguravam notícias de há dois anos (depois das eleições de junho de 2017) dava evidente prova de vida e saúde mais que suficiente para voltar a assustar os partidos tradicionais.
O mínimo que se pode dizer da observação das curvinhas coloridas dos gráficos é que a substituição de Theresa May por Boris Johnson serenou totalmente os exaltados ânimos dos britânicos. Apesar da rigorosa barragem noticiosa que o curioso personagem teve de enfrentar um pouco por toda a Europa e da tentativa, perpetrada pelas mais altas instâncias da Comissão Europeia e do grupo de contacto para as negociações do Brexit, de o soterrar sob a acusação de impreparação, criancice, gosto pela fabulação e destemperamento capilar (em ligação direta à Casa Branca), Boris Johnson sobreviveu.
Os britânicos parece mesmo terem cimentado – ao mesmo tempo que Johnson sentia na própria pele aquilo que apenas tinha percecionado na pele um pouco mais morena de Theresa May – a convicção de que o primeiro-ministro estava ‘condenado’ a ser o homem que vai escrever o seu nome por baixa da frase ‘goodbye and be well’ do tratado do Brexit e só não o tinha ainda feito por manifesta maldade de um punhado (numeroso) de representantes de diversos partidos entrincheirados na Câmara dos Comuns.
É curioso observar-se que a assunção do cargo de primeiro-ministro por parte de Boris Johnson a 24 de julho é o ponto a partir do qual as linhas da evolução das intenções de voto começam a serenar e deixam de ter a aparência serem as linhas de um sismógrafo. É também o momento a partir do qual é possível tirar algumas ilações.
A primeira é que o Partido Liberal-Democrata, inequívoca e tradicionalmente contrário ao Brexit (e que tinha alcançado posição notável nas eleições de 2017) estava a perder a sua estrela. Alegaram os analistas que seria para insuflar os trabalhistas, mas precisamente os trabalhistas estavam a perder força. Paralelamente, o Partido do Brexit (antes de ‘delegar’ em Johnson) voltava a mover-se para a irrelevância. Ao mesmo tempo, os conservadores, umas vezes mais outras menos, foram aprofundando o gap que os separava do seu mais direto adversário e davam mostras cada vez mais evidentes de que o caminho em vista (mas também aquele para que ia apontando a bússola) era o da maioria absoluta.
Uma campanha alegre
Quando se tornou evidente que as eleições tinham deixado de ser uma ameaça para passarem a ser uma necessidade, os conservadores parece terem conseguido algo que já não se via desde que em 2015 David Cameron tinha conseguido uma maioria absoluta: uniram-se em torno do seu líder. Ao mesmo tempo, os trabalhistas, que nunca conseguiram estar incondicionalmente ao lado de Jeremy Corbyn, vacilavam. E foi então que tudo se precipitou: Corbyn anunciou ao que vinha, enumerou privatizações, novos impostos, mais gastos e mais confrontação social e o seu inesperado programa de governo passou rapidamente a ser visto (alguém repescou uma frase usada há uns 30 anos) como a mais longa carta de suicídio da história de Inglaterra.
É claro que nem tudo está decidido. Entre outras razões porque nas últimas semanas deram entrada nos registos dos cadernos eleitorais mais cerca de 3,2 milhões de novos eleitores. Não é um número despiciendo: não chegam a 10% do número de eleitores anteriores a esta movimentação (46 milhões), mas andam lá perto – e são principalmente desconhecidos em termos de tendências políticas, sendo que são sempre jovens, muitas vezes pertencentes a minorias étnicas e normalmente oriundos de bolsas de mediania social, quando não de pobreza. Ou seja, podem em potência ser um voto de protesto contra o abandono da Europa e o regresso ao orgulho solitário que, afinal, carateriza os britânicos desde 1485 – quando conseguiram livrar-se dos reis de ascendência francesa (normandos, plantagenetas, angevinos e por aí).
É também claro que só uma maioria absoluta conservadora fará regressar o Brexit ao seu estado ‘puro’: se ela acontecer, deixará imediatamente de fazer qualquer sentido que os trabalhistas, os liberais-democratas, a Comissão Europeia ou Michel Barnier (o quase sacro-santo líder do gabinete de negociação da saída por parte de Bruxelas) insistam num segundo referendo, seja lá qual for a semântica de uma nova pergunta.
Os trabalhos de Boris
Perante essa possível maioria absoluta conservadora, e segundo vão avançando alguns analistas, Boris Johnson, que não demorará a ser confirmado como herdeiro dele próprio, terá como primeira função colocar o acordo do Brexit fechado com Bruxelas à apreciação da Câmara dos Comuns.
Será o mesmo que já foi apresentado e reprovado. E mesmo que não seja exatamente o mesmo – voltamos à semântica – ele será sempre exatamente o mesmo, uma vez que entretanto as negociações entre os dois lados do acordo estão encerradas. Seria o mais ridículo dos absurdos que, num cenário de maioria absoluta, Johnson tivesse alguma dificuldade em fazer passar o documento e por isso, em termos de análise, o melhor é que os comentadores nem sequer ponderem essa possibilidade.
Depois disso, é uma questão de tempo: “O Conselho Europeu adotou uma decisão de prorrogar o prazo previsto no artigo 50.º, n.º 3, no contexto da intenção do Reino Unido de se retirar da UE. A prorrogação é até 31 de janeiro de 2020 para permitir mais tempo para a ratificação do acordo de retirada. O Reino Unido pode sair mais cedo, em 1 de dezembro de 2019 [já passou] ou 1 de janeiro de 2020, se o acordo for ratificado por ambas as partes”. É isto que diz um texto oficial do Conselho Europeu e é, portanto, com base nestas datas que a Câmara dos Comuns e o novo executivo acantonado no número de 10 de Downing Street estarão a trabalhar. Boris preferirá apostar em 1 de janeiro.
E contudo…
… há sempre a hipótese de a maioria absoluta não ser atingida. Se assim for, a questão do segundo referendo pode perfeitamente ser repescada pelos trabalhistas e pelos liberais-democratas, o que será uma dor de cabeça para Boris Johnson – que terá de regressar à Europa num quadro político em que surgirá junto dos seus pares sem o peso político que com certeza gostaria de exibir.
E também terá de regressar a um lugar – o das coligações – que tanto desastre causou na algures no tempo auspiciosa carreira política de Theresa May. E esse será com certeza o pior de todos os cenários, porque fará voltar ao calor do debate político a eterna questão do backstop – que, convém não esquecer, arrisca ser uma das maiores aldrabices da história contemporânea da Europa (ela, que por tantas é responsável).
O Brexit e a História
“É certo que os ingleses nos odeiam [aos continentais] e com um ódio tão forte e tão generalizado que se poderia ter a tentação de colocá-lo no número das disposições naturais desse povo. Mais verdadeiramente é ele efeito do orgulho e da presunção, pois que não há povo na Europa mais altivo, mais desdenhoso, mais intoxicado com a ideia da própria excelência. A dar-lhes crédito, o espírito e a razão só entre eles se acham; adoram todas as suas opiniões e desprezam as das outras nações, e nunca lhes vem à mente a ideia de escutarem os outros ou de desconfiarem de si mesmos. Aliás, eles prejudicam, com semelhante caráter, muito mais a si mesmo que a nós. Ficam por essa forma à mercê de todos os seus caprichos”. Este pequeno enxerto de um texto maior não foi escrito esta semana: data do final do século XVI, ao tempo do reinado da rainha Isabel, filha de Henrique VIII, e foi escrito por um diplomata francês.
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