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Luís Menezes Leitão: “Várias medidas do plano contra a corrupção parecem inconstitucionais”

O novo bastonário da Ordem dos Advogados (OA), Luís Menezes Leitão, tem sobretudo três temas pensados para a primeira reunião com o Governo, assim que tomar posse: a revisão da tabela do apoio judiciário, a reforma da Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores (CPAS) e o plano nacional de combate à corrupção.
20 Dezembro 2019, 08h22

O novo bastonário da Ordem dos Advogados (OA), Luís Menezes Leitão, tem sobretudo três temas pensados para a primeira reunião com o Governo, assim que tomar posse: a revisão da tabela do apoio judiciário, a reforma da Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores (CPAS) e o plano nacional de combate à corrupção. “Receio que entremos no esquema que tínhamos antigamente de dizer que a confissão é a rainha das provas”, diz, em entrevista ao Jornal Económico. O ainda professor catedrático e presidente da Associação Lisbonense de Proprietários garante que continuará a exercer advocacia e ainda não tomou uma decisão sobre se vai abandonar as funções na academia e na presidência associativa.

A tabela de honorários dos oficiosos não é atualizada há 14 anos e, ao longo da campanha, esta foi uma das suas bandeiras. Propõe pagamentos “num curto espaço de tempo”. Quão curto?
A lei prevê que são 15 dias. De qualquer forma consideramos que deve ser alterado. Não é justo que os advogados no acesso ao Direito sejam os únicos que não estão a ser pagos por diligência. A nosso ver, cada diligência devia implicar um pagamento. Neste momento, o que sucede é que os advogados são pagos por processo – que estima um certo número de diligências, o que significa que acima disto as diligências já não são pagas e, além disso, os advogados têm de ainda contar com a boa vontade dos funcionários para fazerem a certificação do trabalho que fizeram naquele processo e só depois são estabelecidos os lotes. O sistema apesar disso melhorou, de um dois meses de atraso para um mês. Devo dizer que estamos a 16 de dezembro e ainda não apareceram os lotes.

O que vai fazer para que em 2020 haja mudanças?
Independentemente de dever haver uma revisão geral parece-me que não faz muito sentido não fazer a atualização. Espero que haja. É imposto por uma lei (40/2018), que entrou em vigor a 8 de agosto ano passado, portanto, a meu ver, até ao fim de 2018, deveria ter havido uma atualização dessa tabela. Estamos no fim de 2019, nada está feito e nada se anuncia, o que me parece preocupante: uma lei oriunda do parlamento não estar a ser cumprida pelo Governo. Temos de perguntar o que se passa. Ainda não sabemos o que iremos fazer porque só vamos tomar posse a 14 de janeiro.

Após a abertura do ano judicial [6 de janeiro]?
Estranho que, de facto, esteja marcada uma abertura do ano judicial depois da tomada de posse dos órgãos da Ordem. Presumo que o Dr. Guilherme Figueiredo estará a discursar para um ano judicial onde só estará uma semana, o que não faz muito sentido, mas quem organizou não fomos nós. Pelo que percebi, a organização é feita pelo Supremo Tribunal de Justiça, pela Procuradoria-Geral da República e pela OA. Não deixa de ser estranha a forma como está organizado, porque no ano passado foi a 17 de janeiro.

Acha que foi propositado?
Não posso dizer isso. Não sei o que se passou. Foi antes da eleição, mas não deixa de ser estranho que estejam a querer fazer uma cerimónia dessas com titulares da OA (não é só o bastonário) que não vão estar em funções no próximo ano. Não faz sentido.

Concorda com a integração CPAS na Segurança Social?
Acho que a Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores é uma instituição de segurança social. Sempre entendemos que a sua vocação é essa, precisamente por isso é que achamos que lhe têm de ser aplicadas as regras que existem. A nosso ver, as contribuições para a segurança social são tributos e, portanto, pressupõem capacidade contributiva. A tributação que está a ser feita, com base em rendimentos mínimos e que a pessoa paga mesmo que não aufira qualquer rendimento não nos parece que faça sentido. No próximo ano, até vão subir de forma bastante grande de 230 euros mínimos para 251,38 euros. É um aumento enorme num ano em que não houve inflação. O sistema tem de ser revisto. Há indexante, mas o indexante dava valores muito altos, e por isso ele prevê um desconto de 14%, que foi fixado na própria lei, mas diz que todos os anos é a Caixa que propõe o desconto e o Conselho Geral da Caixa só pode aprovar. Portanto, se não o fizer não vigora desconto nenhum e as contribuições ainda sobem mais. Este ano a Caixa decidiu propor um desconto de menos de 10%, o que faz subiras contribuições. Na Segurança Social também se está a pôr esse princípio – a regra de tributar com base em rendimentos mínimos –, o que não acho uma boa ideia, mas o mínimo são 20 euros, portanto é uma diferença muito grande do que se prevê na OA. Somos favoráveis à manutenção da Caixa. Não defendo a integração completa na Segurança Social, pelo menos, enquanto não se souber em que condições. A meu ver, a Caixa tem um elevado património, representou o esforço contributivo de muitas gerações de advogados, por isso a nossa política é a de que se deve manter (sem prejuízo de ter que se alterar algumas injustiças no seu funcionamento). Por exemplo, as contribuições foram subidas, como diz o preâmbulo do diploma, com base num estudo que refere que os advogados têm uma esperança média de vida 11% superior à da restante população. Não vejo nenhum dado que me diga isso e que justifique o aumento de 7 pontos percentuais. Os protestos são compreensíveis. Daí ser necessário uma auditoria, pelo menos para termos informação e estabelecermos uma reforma. A Caixa é uma instituição autónoma e não apenas dos advogados, por isso temos de falar com a direção.

Sugere a criação de um novo seguro. Quanto poderá subir as contribuições se avançar?
Uma vez que já temos um seguro de grupo de responsabilidade civil, que tem funcionado bastante bem, penso que poderíamos tentado fazer um seguro de grupo que cobrisse as eventualidades de doença e maternidade. Temos 34 mil advogados e com um seguro diluído nesta situação consegue-se estabelecer um sistema mais eficaz com as coberturas efetivas. É um aspeto que temos de negociar com a OA, para ver em que termos pode ser repartido. Com um universo grande poderá não ser excessivamente caro.

O tema da proteção em caso de doença grave ou parentalidade foi recentemente discutido no parlamento. Das propostas apresentadas, com qual se identificou mais?
São iniciativas que devem ouvir a Ordem antes. Há iniciativas que não devem ser tomadas sem que a associação representativa dos advogados se pronuncie. O Bloco de Esquerda quer estudar a integração da CPAS na Segurança Social. A que me chamou mais à atenção foi a do PS. Pareceu-me uma proposta algo inócua, porque no fundo vem dizer que admite a suspensão dos processos – hoje em dia só existe um adiamento – se uma colega nossa tiver um bebé ou ficar doente. A suspensão é correta, mas o que eu vi no programa é que isso dependia do acordo da outra parte, o que eu acho estranho: ou se reconhece que é um direito ou então não podem ficar dependentes de terceiros. Não estou a ver que esta situação apareça em termos coerentes.

O que destaca do Orçamento do Estado para 2020 (OE2020) para a área da justiça?
Hoje em dia fala-se das sociedades multidisciplinares, o que me parece totalmente absurdo e é mais uma situação em que a Ordem não está a ser ouvida. Depois aparecem afirmações estranhíssimas, como a Autoridade da Concorrência dizer que ganhava 32 milhões de euros. É óbvio que não faz sentido. Temos de defender as profissões reguladas, que se caracterizam por estarem sujeitas a uma ética e regulações próprias. Acho preocupante que apareçam propostas avulsas destas. Nem sei porque é que isto há-de aparecer no OE2020. Parece-me prejudicial à manutenção da advocacia como nós entendemos que deve ser. Se misturamos tudo numa série de profissionais já ninguém sabe quem está a fazer o quê.

Que temas discutirá na primeira reunião com o Governo?
Em primeiro lugar a atualização e revisão da tabela do apoio judiciário e depois tentar ver em que termos funcionaria uma reforma da CPAS que possa ser justificada. Há outras. Têm aparecido anúncios na reforma do processo penal que me parecem preocupantes e que não está lá a OA. Gostaríamos de saber o que está em causa para tomar uma posição.

Refere-se à delação premiada?
Sim, relativamente a estas iniciativas. Fiquei perplexo por saber que há um grupo de trabalho com iniciativas que não constavam do programa do Governo. É um pouco estranho. Algumas medidas pareceram-me inconstitucionais. Por exemplo, a questão dos tribunais especializados contra a corrupção é claramente proibida pela Constituição no artigo 209 nº4, que proíbe, devido à experiência dos tribunais plenários a existência de tribunais com competências específicas para certo tipo de crimes. Por outro lado, a delação premiada envolve grandes riscos, porque muda completamente a estrutura do nosso processo penal. O processo penal é baseado, entre nós, num princípio de legalidade e não de oportunidade. Não funcionamos como noutros países em que a pessoa pode decidir se faz ou não um ação criminal se considerar mais justificado ou negoceia a pena consoante a confissão que existe e as indicações respetivas. Este sistema não é o que existe entre nós e exige muitas cautelas. A existência, neste caso, de acordos para estabelecimento de penas com base em delação tem um efeito perverso: entramos na chamada teoria dos jogos e no dilema do prisioneiro, em que aquele que confessa primeiro pode ser o único que vem a ter uma pena mais baixa ou uma isenção. Mas isso não garante que a pessoa mais culpada seja efetivamente condenada. Muitas vezes, como se vê nos países que adotam esse sistema, os grandes criminosos acabam por escapar porque denunciam criminosos menores.

A ministra diz que vai fazer alterações “meramente cirúrgicas” nesses mecanismos de negociação…
Não sei o que são alterações “meramente cirúrgicas”. Podemos fazer uma operação cirúrgica que rebente com o coração. Acho que este tema é muito sensível. Do plano de combate à corrupção eu sou completamente a favor, que se combate eficazmente a corrupção. Aqui não vi normas apresentadas vi propostas, ideias, perigosas. O combate à corrupção não se pode fazer à custa dos direitos das pessoas. Noutros países em que houve delação premiada chegou-se ao ponto de forjar documentos das pessoas que confessaram. Neste caso ainda nem se sabia se as confissões tinham alguma viabilidade. Receio que entremos no esquema que tínhamos antigamente de dizer que a confissão é a rainha das provas. A verdade é que as condenações têm de basear em provas efetivas e não apenas na condenação de arrependidos. Em qualquer sistema existe sempre, se a pessoa se arrepender, a possibilidade de vir a ter uma consideração no âmbito da pena. Neste caso é diferente: é um negócio de colaboração.

Antecipa alterações no regulamento dos estágios?
Achamos que hoje o estágio está muito burocrático. A nossa ideia era transformar o estágio numa verdadeira escola de advocacia. Não se está a dar a formação adequada aos estagiários. A nossa ideia era atribuir ao estágio um carácter de funcionamento como uma escola superior, garantir uma formação de qualidade e que, de facto, as pessoas saiam de lá preparados para ser advogados. Hoje em dia ainda existe na sociedade uma ideia – que eu considero profundamente errada, porque também sou professor de Direito – que o curso de Direito serve para exercer advocacia. Não serve. É preciso formação depois. Até o próprio raciocínio, baseado numa retórica argumentativa, que não é propriamente o que se ensina no curso, tem de ser ensinado no estágio. Ao mesmo tempo queremos ver se conseguimos, através do Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP), criar bolsas que permitam dar alguma remuneração aos estagiários ou, pelo menos, àqueles com mais dificuldades. Teríamos de negociar com o IEFP os valores.

O resultado das eleições na OA não o surpreendeu. Porquê?
A partir do momento em que passámos para a segunda volta achámos que, de facto, havia um grande descontentamento dos advogados com a atuação do anterior bastonário. Tivemos a surpresa dos outros quatro candidatos: duas declararam apoio ao atual bastonário e dois contestaram o processo eleitoral. Ficámos sozinhos, mas isso não nos afetou.

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